sexta-feira, 31 de julho de 2009

Whisky a go go






Enquanto o mundo desaba à minha volta, fico pensando na melhor maneira de riscar, à unha, a lataria do seu carro. E pelas minhas contas, uns cinco dias sem dormir direito. A cabeça não pára um só minuto, não dá trégua e esta é só a primeira parte de muitas madrugadas. No resto do dia, fico catando palavras, perseguindo maneiras de dizer pura e simplesmente o que não vai ser ouvido. E esse whisky é só uma ficção.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Mais uma esquina






o carro se afasta na chuva. uma mão, em adeus, acaricia o vidro. na rua, passos de quem olha e não vê aquele gesto silencioso e último. uma parte fica, a outra vai não se sabe aonde. a rua é cinza, o dia é cinza, o mundo é cinza, a água dissolve todas as possibilidades. o lugar é qualquer um, o imponderável desconhece geografias.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Conversa na Tabacaria



Estar vivo é quase vertigem, uma consumição voraz, febril, demasiada. E noutras horas, lânguida moça de pernas compridas, entrecruzadas, unhas vermelhas, que fuma a cigarrilha em displicência, enquanto fita círculos que se dispersam no ar parado de um quarto que não é seu.


Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.



Dói e não se basta. E cada dia, palavra e gesto chegam a preço de carne viva, navalhada. Onde estão as certezas prometidas? O bafo doce da sorte? Os queimores da paixão? Não, não se vê nada além da noite e das paredes frias, mapa secreto da desolação. Outra vida, de outra matéria, corre lá fora, graceja em saias floridas que o vento tange, regala-se em risos que se espraiam rua afora, pacificada que está pela sábia ignorância ou, quem sabe, pelo profundo entendimento e aceitação das efemeridades. Todas essas vidas, em coro, vão. Aqui, olhos inertes, voz congelada e uma tela vazia. As tintas secaram faz tanto tempo, na escuridão.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.



A mesa, as flores, as poltronas, os livros, o perfume de sempre, a figueira. Tudo mudei, tudo mudou para dentro de mim. Hoje sigo levando o peso do mundo que me confere contraditória leveza. De nada mais sinto a ausência. Todas as caixas, semicerradas, me espreitam com olhos de bem-me-quer. E ao abri-las, todos os risos, lembranças e melancolias me cercarão de amor num abraço terno de reencontro. Mas vou gozá-las aos poucos, todas, sem pressa, porque felicidade e tristeza em demasia me deixam tonta, desnorteada. Uma bolinha de sabão que estoura ao leve roçar do dedo.


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.



* Em itálico, trechos retirados em desordem de Tabacaria, de Álvaro de Campos.

domingo, 26 de julho de 2009

Agosto






Lá vem agosto
é quase agosto,
dias de agosto,
chuvas de agosto,
a ventania,
o mês de agosto,
a dor de agosto,
você em agosto
é nunca mais.
e eu, sozinha,
contando agostos
fico pensando
se foi agosto
culpa de agosto
essa saudade
que não se esgota
ano após ano
que não estanca
a sete chaves
que me consome
bem escondida
essa saudade
quando é agosto
teima em florir

sexta-feira, 24 de julho de 2009

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Ah, ah, ah, minha pipa está no ar...



Esse povo se leva muito a sério, né não?

Vejam os comentários talibânicos de duas criaturas que caíram aqui por obra e graça de São Google. Ficaram revoltados com a minha resenha d'O Caçador de Pipas e não perceberam que se trata de uma tiração de onda e mandaram ver, esculhambando a minha pessoa. Não se deram ao exercício contextual de ler pelo menos um tantinho do blog e sacar que o humor é uma das minhas características textuais. Tampouco se preocuparam em clicar nos marcadores e ver que, no caso da resenha, gréia (significa escracho, sarro, piada, brincadeira) é uma das categorias nas quais o post se enquadra. E ainda chamaram meus leitores de baba ovo. Hahahahahaha

Como fiz também a resenha de Leite Derramado, a minha esperança é que o próprio autor venha aqui no blog tomar satisfação... Ui! Hahahahaha

Mas é isso aí mesmo: a globalização só faz aumentar a disseminação de gente chata, fundamentalista, preconceituosa e sem senso de humor. Da minha parte, continuarei escrevendo o que quero e como quero, vão patrulhar a puta que os pariu!

P.S. Os comentários estão aqui.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O Caçador de Pipas (Khaled Hosseini)






Resenha em um mísero parágrafo:


Menino riquinho, filho da puta e egocêntrico deixa o melhor amigo e puxa-saco entrar pelo cano (literalmente) por causa de uma pipa; roendo-se de remorso, volta, anos depois, para criar o filho do melhor amigo a quem provavemente vai deixar também que entre pelo cano (literalmente) e vice-versa.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Enquete Betty Faria



Eu juro que estava aqui, quietinha, fazendo o anteprojeto da minha monografia, quando chegou um e-mail volumoso na minha caixa postal. Ivette Góis, a anônima do bem desta birosca, promete e cumpre: mandou munição para a próxima Enquete Betty Faria - muito boa a qualidade do material, por sinal. E o engraçado foi que o moço em questão passou batido, eu nem tinha reparado nele.

Portanto, ainda sem data definida, mas em breve, aguardem a próxima edição da Enquete Betty Faria, que vem para açoitar os corações e elevar a temperatura. Porque quando Betty diz que faz, vocês sabem que a coisa é séria!

Tolinha









Porque hoje amanheci trabalhada na testosterona. ;)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Dia do Amigo



E hoje é Dia do Amigo, é? Devia ser do Inimigo, aquele do lado negro da força, ia ser mais animado. Já imaginou você mandando desaforos em forma de scraps, e-mails e cartões virtuais com peixinhos, florzinhas e balões desejando ao seu desafeto uma ida sem volta praquele lugar? Ah, seria bem mais divertido, confessa.

Talking to my left hand






Sabe aquelas coisinhas nas quais você pensa e nelas se projeta às vezes com força displicente e de vez em quando faz algo, dá um passinho mínimo, mesmo que na sobra de tempo entre um dia e outro para que elas se realizem? Aquelas com as quais você divaga just for fun? Essas coisas que alguns chamam de sonho, projeto dormido, escapismo e demais substantivos pinçados de acordo com a personalidade do sonhador, projetista sonolento, covarde e do que mais se venha a combinar vice-versando a conversa fiada? Pois bem, tenha cuidado com essas projeções porque elas podem se apresentar diante de você prontinhas para serem vividas. E aí, meu bem, neguinho cola as placas, pensa na vida, no que vai deixar pra trás nuns acessos de pânico que dão dó. Muito confuso? Hermético demais? Depois eu explico, porque preciso racionalizar até me convencer de que essas coisas podem dar certo, mesmo com todos os eventuais (e alguns bem conhecidos) ossos duros de roer e acidentes de percurso.

domingo, 19 de julho de 2009






E Len Wein criou Wolverine.



Vontade de ficar enrodilhada.

Esprit d'escalier



Sem modéstia, eu sou dono de um dos maiores esprits d’escalier que conheço.

Esprit d’escalier é aquela resposta adequada na qual você só pensa muito tempo depois de levar um belo desaforo nas fuças. Por isso o nome, espírito de escada: a frase perfeita que só lhe vem quando você já está descendo a escada, batendo em retirada, humilhado. É o consolo dos idiotas.

Depois da hora certa, eu posso ser genial. Sem ninguém na minha frente, eu sou brilhante.

Mas de vez em quando eu penso na coisa certa na hora certa, e esses momentos me enchem de orgulho, e meus netos me ouvirão repetir essas mesmas histórias vezes e vezes a fio, daqui a muitos anos — tanto mais porque são muito poucas as vezes em que consegui esse feito.

Aconteceu isso em Londres, uns meses atrás, ali perto do Ritz. Eu estava com fome. E já estava meio cansado de comprar aqueles takeaways nas Sainsbury’s da vida para comer sentado em algum parque ou praça.

Foi quando a gente viu uma Pizza Hut. Pizza Hut deve ser barato, foi o que a gente pensou. É a única vantagem dessa comida ruim que se espalha pelo mundo: o gosto pode ser uma droga, mas pelo menos os preços são acessíveis. É o que faz você tolerar um McDonald’s, uma Pizza Hut, uma Domino’s, um Burger King, essas coisas que se espalham como praga com seu paladar uniformizado e industrializado e que tornam o mundo um pouco mais pobre.

Quando a gente entrou, uma moça veio nos receber com o menu na mão e nos encaminhou para a nossa mesa.

Era um sinal, e mau. Obviamente, nós não fomos inteligentes o suficiente para perceber o óbvio: uma Pizza Hut nas imediações do Ritz poderia ser tudo, menos barata.

Sentamos à mesa que a moça indicou e abrimos o cardápio. E então os preços saltaram aos nossos olhos, e eram libras pesadas sobre nossos bolsos depauperados.

Eu não ia comer ali. Era caro demais. Eu podia dar à minha pobreza uma outra desculpa, a de que o preço não era apenas alto, era exorbitante diante de comida ruim, mas para ser honesto não era essa questão, não diante da minha fome: era só falta de dinheiro, mesmo.

O que me deixava com um novo problema, que se juntava à minha fome.

A gente tem vergonha de umas coisas bobas na vida, que à medida que o tempo passa vão ficando mais ridículas. Isso de sair de um restaurante porque não pode pagar, por exemplo. Se eu fosse rico, não ligaria de olhar os preços, torcer o lábio e me levantar fazendo cara de nojinho, e ainda dizer no mais esnobe sotaque inglês “Oh, dear, it’s improperly expensive, and it’s not worth it!”. Mas para mim, que aprendi com minha mãezinha que a gente era pobre mas era limpinho, é uma coisa meio vexatória esse negócio de levantar de uma mesa depois de ver os preços. É uma confissão meio humilhante. Dá vergonha. Se eu pelo menos tivesse saído antes de abrir o cardápio.

Mas não era só isso que me mortificava. Imagem de brasileiro lá fora já é tão ruim, meu Deus. Pior em Londres, lugar onde a polícia gosta de matar brasileiro no metrô. E lá ia eu avacalhar ainda mais a impressão que as pessoas têm do meu cantinho. A partir daquele dia, a moça que nos recebeu à porta, quando entrasse mais um brasileiro, diria baixinho para as suas colegas: “Olha, lá vem mais um brasileiro que não pode pagar uma pizza. Vai lá atender esse povo, Elizabeth”.

Mas Deus protege os tolos, é o que dizem, e enquanto me levantava e me encaminhava para a saída eu de repente percebi que havia, sim, uma frase que eu poderia dizer e que resgataria a minha honra e a minha decência, e defenderia a honra do meu país como um Duque de Caxias ou um Almirante Tamandaré, e falei bem alto, para que todos me ouvissem:

– Yo me voy, acá es muy caro! En Argentina no es asi!

E saí de lá com a impressão de que fiz mais pela imagem do meu país do que quinze Lulas e oito Celsos Amorim.


Fonte: Rafael Galvão

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Leite Derramado (Chico Buarque)






Resenha em um mísero parágrafo:


Velho centenário e esquizóide, em um corredor de hospital do SUS, relembra as glórias e os brasões de sua tradicional família, embalado pelo efeito cumulativo e alucinógeno dos chifres colocados pela ex-mulher, e morre, finalmente.

Como se essa rua fosse minha



passos apressados na calçada estreita, suja, esburacada. uma caixa de papelão aberta. os pés desviam, ligeiros: a cama de alguém. como é perversa a lógica do conformismo, sussura o que ainda resta de indignação.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Cegamente



Não, não entendo muito de mim nem dos meus avessos, o que é fazer sentido? Dar conta de si enquanto espera a vez na ante-sala do dentista? De pequenos recortes de sonhos nebulosos eu vivo, não preciso de mais nada que me dê um norte, eles me bastam, são suficientes, pois se de olhos fechados, perdida e solta, deixo meus medos e limites de lado, por que não haveria de, em troca, cegamente confiar? Nos olhos ainda há o brilho antigo que se espalhava em pequenas porções de ternura e violência misturadas, quase sempre vividas em desproporção, eu nunca entendi exatidões. Hoje ainda passeiam esses arrepios de menina na pele da mulher que sente as dores e os espantos alheios como se fossem seus, por muitos deles já ter quase vivido. Uma mulher a quem você pensa conduzir com um sorriso terno e condescendente. Essa mulher que também te sorri, sente, no fundo da alma, uma justa e sincera piedade por você, pelo que você esconde, pelo que você teme. E seguirá assim, sem medo de nada que lhe vem de dentro, mas completamente aturdida pela vida lá fora. Ao contrário de você.






Sonhei com Liv Ullmann, não com a que está aí na foto, mas a senhora de hoje, de 70 anos. Para quem estava há tanto tempo sem sonhar em inglês, até que a conversa fluiu bem. No sonho, eu lhe falei da importância de ter lido Mutações em plena adolescência. Ela me olhou, agradeceu e sorriu com aquela compreensão fraterna que acontece entre as mulheres e que é única. Acordei pensando que, a despeito e por muita sorte e felicidade de Clarices, Cecílias, Florbelas, Simones, Elizabeths, Anas Cristinas, Adélias e Hildas, não temos, como mulheres, uma ancestralidade literária: a voz que nos acostumamos a ouvir, a Outra Voz de que nos fala Octavio Paz, é a voz do homem, é uma visão masculina de mundo, por mais sensível e poética que ela possa ser. Talvez por isso, por termos contato com esse estar no mundo que brota das entrelinhas, das camadas mais profundas dos seus textos, tenhamos uma percepção mais aguda da natureza masculina, de suas defesas e dos seus temores. Pena que esse sentir não se realize numa via de mão dupla, reciprocamente: a literatura, além de fruição, seria também um espaço de tácito entendimento.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Curtinhas



Por mais que você racionalize e diga que a fundura do poço é diretamente proporcional à sua taxa de hormônios enfurecidos, a sensação é a mesma, não passa: ninguém trisque, pergunte a mesma coisa duas vezes ou se faça de besta porque, ai, corre risco de morte. Enfim, boa noite a todos que por ventura ainda passam por aqui.

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Eu tinha tido a brilhante idéia de me juntar com o povo d'O Bacurau e mais uma cambada de desocupados e lançar um programa que já tinha até nome: Phodcast. Mas os salafrários sumiram, de modo que, no final das contas, foi melhor assim mesmo. Quando esse povo se junta pra falar bobagem, a esculhambação campeia. Eu, claro, ia ser a mediadora dessa mundiça.

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Minha semana começou tumultuada e eu (re)aprendi a ter raiva de pessoas que não sabem dizer não e agem como se esse não tivesse sido dito. Então, fica a lição pros incautos: mesmo que vocês se achem macacos velhos, meus bens, desconfiem sempre das bondades alheias. Como perguntaria minha sábia avó numa hora dessas: Você está pensando que o céu é perto? Essa, sim, entendia das coisas.

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E quinta-feira é feriado. Nossa Senhora do Carmo, padroeira do Recife. Orem e façam suas promessas, porque a cidade precisa.

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Não sei quando volto a atualizar o blog, ando sem muita vontade de escrever. Depois passa. Ou não passa. Em todo caso, tem muita merda blogosfera afora: uma a mais, uma a menos não fará tanta diferença assim. Divirtam-se e cuidado com a friagem.

sábado, 11 de julho de 2009

Cavilação



Todo causo cabe três estórias:
a tua, a minha e a verdadeira.

Dito de boa Sabença
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Ah, Genival, que injúria me prega! Nada disso que está pensando, não!... Já lhe disse que não! Nego e renego! Ora, faz mesmo questão que lhe explique? Por mim, nem carecia... Pois bom, sem tirar nem botar, lhe conto.
Pois bom, todo dia, logo cedo, cheiroso e engomado, você corre a trabalhar de balconista. Muito que lhe bem. Toda noite fica ainda fora, fazendo biscate de garçom. Coisa que desgosto, mas me conformo, ainda que carecida. Se acha que, assim fazendo, nada me falta... Disso, faz tempo, deixei de reclamar. Preguiça não enche barriga. Tenho mesmo que agradecer, bem retribuindo seus cuidados de bom marido.
Hoje mesmo, larguei minhas costuras, lembrada de passar punhos e colarinhos de quantas camisas. Mas a goma tinha acabado e também faltava carvão pro ferro de engomar. Ora, essas faltinhas, você não perdoa mesmo, pois não? No menos das vezes, não diz, mas palpito que me pense mulher preguiçosa e relaxada. Não mereço, mas esqueço tais ninharias.
Adonde comprar goma e carvão, hora daquelas? Mesmo debaixo de quanta chuva, devia de cumprir essa obrigação. De manhã cedinho, havera meu homem de estar todo lorde, arrumado e engomado, pra bem servir quem servido fosse.
Daí avante, tudo fiz mais que avexada. Enfiei o vestido assim mesmo, nadinha por debaixo, peguei a cesta e rumei pro mercado, sem avaliar se aberto ou fechado estaria. Com pressa, esqueci da sombrinha. Nas ruas, chuva muita e nem viv'alma; somente a devota aqui, zanzando atrás de goma e carvão. Ensopada e friorenta, vestido colado nas formas, como ainda estou. Passava na esquina da rua Esquerda, quando, sem ninguém à vista, escutei um chamado vindo do Beco Mirim. Sou mulher direita, você sabe que não atendo a qualquer psiuzinha à-toa! Mas, de novo, aquela vozinha me chamou. Nada de chamamento safadeza, não. Era gritinho rouco, fraquecido, embora aperreado, dizendo meu nome com todo respeito.
- Ei, dona Francleide!...
Fui virando o rosto devagar, olhando enviesado, pronta pruma honesta rabiçaca. Mas findei espiando direitamente e não tinha ninguém. Já seguia caminho, rindo do disparate, quando chamaram outra vez. A voz vinha de baixo, rente ao chão.
- Dona Francleide!...
Ora, ninguém caído estava, nem ao menos acocado, naquele bequinho sem esgotos nem porões. Somente um sapo, cururuzão avantajado, tamanho quase dum peba, ali parado num pé-de-parede. Dei um tunco e já passava adiante quando percebi que era justamente aquele sapo que chamava. Fiquei pasma com tal disparate. Sapo comum, agrandalhado, mas comum, cururu besta de beira-de-corgo. Se bem que algo emagrecido, sem aquele bucho inchado que todo sapo carrega. Avaliei ser leseira minha. Mas aí, pulando pra minha banda, o cujo falou, meio choroso.
- É com vosmicê mesmo, dona Francleide!
Ufa, no tamanho susto, fiquei presa no chão, abismada naquilo.
- Somente pessoa de alma pura e justa, pode me valer nessa desventura! - o bicho seguiu dizendo, muito convencedor.
Eu queria correr e não podia, gritar e nem gemia. Quando alembro chega me arrupio! Não desfaleci por falta de acudimento, juro! Daí que o sapão chegou mais perto, olhou pros lados e...
- Não tenha medo, dona Francleide, não quero nem posso lhe fazer mal. Apenasmente imploro sua ajuda caridosa. Se digne de ouvir, com toda compaixão, a estória do meu penoso padecer!
Eu não disse que sim nem que não, olhando arregalada praquele bicharoco magrelo e nojento. Ele chegou pertinho e pulou pra dentro do meu cesto. Argh, que repunança; quase rebolo fora aquilo tudo! Entonce, com todo doce que pode a voz dum sapo, me propostou:
- Vambora pralgum lugar cômodo e seguro. Mode, em sossego e segredo, lhe contar minha triste sina.
A chuva seguia pesada, ensaiando trovejos e relampeios. Adonde, nesse atrapalho, havera uma mulher honrada de buscar arrego? Nem responda, Genival! Voltei pra casa sem trocar palavra com o dito, querendo que tudo findasse num sonho maluco. Aqui chegando, me pediu portas fechadas e coração aberto; pronto que obedeci. Aí ele saltou fora do cesto e pinotou pra nossa cama, desacanhado como todo cururu. E ficou de lá, muito sapamente, me olhando esbugalhado, o papo batendo vento. .. Eu, embora que ainda meio confusa, estava mais calma e demais curiosa naqueles aconteceres. Pelo sim, pelo não, somente encostei portas e janelas. Ainda sem fala, bebi água, respirei fundo e tornei ao quarto, rezando pra que fosse somente imaginação. Mas o danado ainda lá estava, mais sapo do que nunca, atento num rola-bosta que voejava rodeando o candeeiro. E me mandou, muito despachado:
- Sente na beira da cama e preste atenção!
Procurei o lado mais longe dele,pois ainda me metia medo, embora que misturado com troncho respeito. Então, assim me aclarou:
- Meu nome é Regivaldo e não nasci sapo, não. Na verdade, sou um príncipe, mancebo nobre e bem apessoado...
Nesse dito, debochei um riso que logo-logo murchou. Pois ele, toando honesta verdade, contava o que agora lhe conto.
- Sempre me encabulei pra banda de mulher - começou dizendo - tanto que nunca tive namorada, por pura vergonha de falar nessas coisas. E veio daí minha perdição. Acho que, no fundo no fundo, mais aprecio jogos de paz que artes de guerra. Fico contente junto aos meus pajens, rapaziada alegre e formosa. A rainha minha mãe botou reparo no meu fastio pelas moças. E, meio escabriada, me cobrou aclaramento. De pronto que lhe respostei: "Arre, mãinha, minha fina machice dasaguenta daquelas frescurinhas dela, viche!" Não se ria, não Genival, mode algum malembaraço no desfiar da estória! Sinta quanto engasgo de tristeza na sina infeliz desse coitado! E o sapo seguia contando...
Até que, num malembrado dia, uma princesa bonitinha e poderosa, mas sem tico de simpatia, se arriou toda por mim. E botou-se me cercando, fazendo por onde noivar comigo. Eu, nisso muito enrolado, ficava desjeitoso pra mandá-la embora; adiando e atrasando resposta que nunca vinha. Até que , o reizinho pai dela veio falar com minha mãe rainha, pra ajuste de casório. Muito feliz com a proposta, sem ao menos me perguntar mãinha pronto que aceitou. Pobre de mim! Obrigado a juntar todas as forças, na hora e vez do noivado, pra dizer, perante os convidados, que não queria casar de jeito nenhum! Ah, naquilo chegou-me desgraça! No quando, desarvorado, gritei que nem morto casaria, a linda princesa, me acredite, se transformou numa bruxa horrorosa! Piedade de nós! E num só gesto mágico fez que a rainha minha mãe e toda sua corte virassem insetos de várias diversidades. Gafanhotos, besouros, baratas e mariposas, que logo se espalharam mundo afora. E pra mim, teso de medo, entre risadas de despeito, a escomungada me agourou pior maldição.
- De agora em diante, profetou, serás um sapo cururu ronceiro e feioso e, como todo sapo, comerás insetos de toda qualistria! Mas a dúvida será teu castigo. Nunca saberás se cada bicho que engoles seja teu pai, tua mãe ou teu pajem predileto. E nessa incerteza passarás fome, vagando pelo mundo em busca de mulher séria e bondosa que te redima os pesares. Pra quebrar o encanto e voltares a ser príncipe novamente, tua salvadora deverá banhar-te com sabonete de ervas e água-de-cheiro. Mas quando tornares a ser humano estarás nuzinho e ninguém, a não ser tal boa mulher, poderá ver-te assim.
Foi por isso, Genival, que alguém saiu correndo do banheiro, pulou a janela e se escafedeu. E deixe de sua maldade besta, se enciumando daquele unzinho trejeitoso... Ah, pobre príncipe, tão belo, tão delicado, esguio que nem Biliu de Ingrácia!... Capaz de virar sapo de novo, o bichinho! Tudo por culpa sua, Genival, nesse jeito estabanado, entrando assim sem avisar! Tibes! Deus que lhe perdoe tão injustos malpensares!... E se quiser roupa aprontada, que arranje goma e carvão!

(Bartolomeu Correia de Melo, escritor natalense)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Conversinha à toa



Experimente um dia, meu bem, sair de casa sem a roupa de domingo, sem óculos escuros. Deixe o telefone em cima da mesa, saia sem ele. Também não use seu carro, pegue um ônibus e siga um destino qualquer, desconhecido. Olhe para as pessoas, olhe bem, sem receio, você não as verá mais e nem elas a você. Deixe em casa seus discursos, o script pronto, suas racionalizações. Seus compromissos urgentes, seus afetos, todos os planos, deixe-os em casa só por um dia. Esteja só, mas só de verdade. Nada que te prenda, nada que te explique, deixe tudo estar, deixe para trás. Vá sozinho com a cara lavada e a pouca coragem que lhe resta, não importa, mas vá. E leve junto aqueles incômodos que você tenta, a preço de muito suor e dor, esconder. Aí você verá, pelo menos por um dia, que arrogar certezas é conversinha à toa para enganar a vida. E que no final, querendo ou nos esforçando em contrário, somos todos bobagens, meu bem, piadas de mesa de bar.

quarta-feira, 8 de julho de 2009







































Síndrome do teclado vazio.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Palavra de mulher





Conto de fadas moderno



Era uma vez uma menina
que conheceu um príncipe
que beijou a menina
que virou princesa
com o passar do tempo
o príncipe bocejou
deixou de fazer a barba
peidou
arrotou
esqueceu de tomar banho
virou sapo fedorento
aí a princesa virou bruxa
resmungona
verruguenta
diabólica
enquanto o sapo e a bruxa viviam no mata-e-não-mata
eis que surge uma fada galinha
e com sua varinha mágica
transforma o sapo em príncipe
e a si em princesa
só que a bruxa, muito safa, certa da sua vocação
nem quis deixar de ser bruxa
rogou praga e transformou os dois, tão bonitinhos,
no que eram de fato
e desse jeito
cada um a seu modo
foram felizes para sempre
ou fingiram que eram...

domingo, 5 de julho de 2009

Nova campanha da Arezzo



Comercial de sapato. Faz todo sentido.




quinta-feira, 2 de julho de 2009

Espelho



Este rosto no espelho me mostra o que se gestou no silêncio, sem que eu me desse conta e a despeito das minhas vontades às vezes tão tolas. Nele vejo, de súbito, a minha ancestralidade. As mulheres fortes e ao mesmo tempo frágeis e pequeninas que fui e serei. Que sempre estiveram em mim, agora mais nítidas do que antes, é certo,
embora o contorno se expanda para além do que vejo, suas sombras e as minhas a um só tempo. E o que eram fantasmas hoje são heranças e conciliações. Hoje eu me vi, enfim.