segunda-feira, 31 de março de 2008

Coisas da vida - anos 80




Eles se viram pela primeira vez num show de MPB. Rolou uma paquera, aquela coisa elétrica que fica no ar depois de meia dúzia de olhares. Mas como estavam muito atentos à performance no palco, deixaram-se passar.

Um tempo depois, reencontraram-se no restaurante macrobiótico que, descobriram depois, freqüentavam vez por outra.
Você não estava no show duas semana atrás?, pergunta ela. Sim, ele estava, e ela sabia. E ele sabia que ela sabia. E o papo se prolongou entre goles de ban-chá e bocados de arroz integral. Trocaram telefones e combinaram marcar alguma coisa.

Marcaram um chopp. Ele tinha acabado a residência de medicina depois de ter passado pelos cursos de engenharia e história, dos quais não gostou. Ela estava nos primeiros períodos de ciências sociais e achou muito esquisito o charuto que ele acendeu no intervalo entre a chegada de mais duas canecas de chopp e o silêncio comum entre quase estranhos que repentinamente percebem que o tópico da conversa esgotou. Ela pensou em Fidel e começou a simpatizar mais ainda com algumas excentricidades que foi percebendo no rapaz ao longo do encontro.

Começaram a namorar. Ele não era bonito, na verdade era até feio, magro, desengonçado, mas tinha seus encantos. Era culto, safado, sensível e desconcertante. Tinha um olhar agudo que a perturbava. Suas idéias fascinavam-na, suas opiniões seguras sobre todas as coisas exerciam sobre ela um encanto tal que, bem, quem não é, depedendo do ângulo, um pouco esquisito?

Além de tudo isso, ela tinha uma enorme vontade de conhecer o mundo e essa era uma aspiração bem mais intelectual do que física. Era delicioso vê-lo numa roda de amigos, seus ou dela, discorrendo com desenvoltura e muitas vezes sem ter que replicar sobre assuntos que ela ouvira apenas de passagem. Esse era seu maior encanto. E ela não ficou imune a ele.

Sua estante de livros era apenas um quarto-e-sala comparada com a biblioteca dele. E ela leu demais e de tudo que ele indicava: Reich, Sartre, Umberto Eco, Pasolini, Hermann Hesse, Marguerite Yourcenar, Kafka, Camus, a vanguarda da Bauhaus... e o mundo se descortinava, enfim. Ele até podia não ser lá essas coisas na cama, mas esse detalhe ela bem justificava por causa da efervescência intelectual do rapaz, que não conseguia parar de ter insights sobre os mais variados temas, nada passava por ele sem que houvesse uma leitura ideológica subjacente. E ela amava isso nele. E ele também.

Meses se passaram e o relacionamento altamente revolucionário em termos de socialização do conhecimento dele em troca da beleza e admiração dela prosperou. Passaram a viajar juntos, conheceram a família um do outro, pensaram até em morar junto porque casamento no papel era coisa de burguês. E ele, de quebra, ainda sabia cozinhar e tudo dentro das leis do Yin e do Yang - cada alimento tinha que ser cortado de tal maneira para não quebrar o equilíbrio da receita. Era uma felicidade testada e comprovada por inúmeras teorias e leis universais.

Um belo dia, decidiram passar o fim de semana na praia. Como ambos não tinham carro, foi o jeito encarar a ida ao litoral de ônibus mesmo. Uma viagem de quase duas horas já que a praia escolhida não era do tipo que os burgueses freqüentavam. Era um lugar onde pessoas como eles se sentiam à vontade: muito reggae, hippies remanescentes e seus artesanatos, meninas que não depilavam as axilas, rapazes cabeludos e muito cheiro de natureza no ar. Isso é que era pegar uma praia para eles.

No ponto de ônibus, enquanto aguardavam o início do idílico fim de semana, de repente, do nada, ele passa a mão no seio dela. Os dois nem estavam se beijando ou juntinhos. Estavam parados, no meio de outras pessoas, proletários na sua grande maioria. Ele riu para ela com cara de gaiatice, mas ela não viu assim. Sentiu-se ofendida. Deu-lhe um tapa no rosto. Seguiram viagem. O fim de semana na praia foi constrangedor. Ele se sentiu humilhado. Ela não sabia o que sentia, mas intuía que alguma coisa estava fora do lugar. Não se achava certa nem errada, não conseguia entender o que se passou, mas também não se via pedindo desculpas. E o namoro acabou quando voltaram para casa. E ela devolveu todos os livros dele, mas pediu para ficar com um que, por conta do entrevero do fim de semana, mal conseguira abrir. Enquanto morria o romance, nascia uma mulher.


Update:
Dizem que ainda hoje a moça escreve com fome e adora comida árabe. Quem viu, viu. Quem não viu, eu editei. Rá.

9 comentários:

Anônimo disse...

adorei a crônica,a cara dos anos 80 mesmo.
Uma pergunta:será q o tal livro que ela mal conseguiu ler no fatídico fim de semana não era da Simone de Beauvoir não?Seria uma inspiração e tanto e,no fim,o tiro saiu pela culatra.

Beijos e []s

Ivette Góis

Conrado Falbo disse...

oi Kênia, não sabia que tinhas blog! já está anotado! abraços

Kenia Mello disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Kenia Mello disse...

Conrado, seja bem-vindo.
Depois de muita relutância, estou com esse blog desde o início do ano.

Beijo.

Giovanni Gouveia disse...

Tem alguma coisa de diferente no ar, quem costuma comer livros são os cientistas sociais... Embora geralmente não tenhamos grana para comprá-los... Estudante de medicina usualmente está muito entretido em decorar bulas hehehehehe.

E, na década de oitenta, íamos para Calhetas (a descrição é quase um retrato de lá)de trem e caminhão mesmo, pq no ônibus a poeira ficava reprezada.

Apesar da diferença de gênero, a estudante de ciências sociais, macrobiótica que bebe chopp, sei não, quase eu :D

Mas o texto gera uma nostalgia dukaray, pra variar bem escrito como sempre.
Beijos pra tu e pra pirraia.

Kenia Mello disse...

Gio, perceba que o rapaz era médico, mas passou por engenharia e história, de modo que não era um bulófilo qualquer.
Ô anos barrocos esses 80...

Beijos pra tu e pro pirraio.

Reporter Bacurau disse...

Oxe Gio! Eu sou engenheiro e também devoro livros.

Belo texto! Se fosse nos anos 70, ele teria dito no fim do romance: "Devolva o Neruda que você me tomou... e nunca leu"

Anônimo disse...

o amor invade tribos, filosofias,religioes
invade tudo

Anônimo disse...

Tô com o repórter-engenheiro, pq tenho um irmão engenheiro civil que simplesmente DEVORA livros (sem nenhum pedantismo, diga-se de passagem), perdendo apenas pra uma irmã economista/compulsiva literária.(Essa já é mais vaidosa rssss cá pra nozes...deleta!)
Já euzinha, que passei pelas faculdades de Biologia e Direito e só tenho uma mirradinha licenciatura em Biologia, ADORO escrever!!!
PORÉM não chego nem na barra da saia dela... rs:P
Parabéns pelo texto...
Viajei... :)
ah... imitando ainda o repórter, se fosse nos tempos atuais q a tchurminha já começa a beber aos 12, a frase seria "confesso que bebi" (afff pôdi, deleta tb:P)
bjão