quinta-feira, 24 de abril de 2008

Você e os outros




Você aprendeu, desde muito cedo, a tentar entender as pessoas não pelo que elas diziam, mas pela maneira como diziam. Sempre desconfiou das segundas peles, daqueles discursos por debaixo de outros, daquelas palavras contraditas por braços cruzados no peito, por pés que não paravam quietos. Mas isso tudo é tão subjetivo... Pode ser refutado, ignorado, contradito. E você fica como? Como poderá defender seus pontos de vista baseado em nuances desse tipo, sem nada, digamos assim, concreto? E assim são construídas hipocrisias, negações, mentiras. E sobra você, com cara de bobo, de desajustado, de sensível demais e, por isso, desfocado.

Aí você ou entra no jogo ou não entra. Tão claro, tão simples que chega a ser patético. Você perde a credibilidade, as pessoas passam a ter cuidado com você porque corre à boca miúda que você exagera... Isso quando você decide não entrar. Mas, ao mesmo tempo, determinadas pessoas temem o seu olhar - elas se sentem despidas diante dele e isso é embaraçoso...

Por outro lado, se você decide entrar no jogo, passa a manipular essa visão de mundo a seu favor. Você faz o jogo de forma consciente, programando as peças do seu tabuleiro de acordo com o que o outro tem em mente, você desenvolve um faro exemplar. E com o tempo suas técnicas se tornam mais apuradas, mais sutis. E eis que surge o farsante propriamente dito. Mas um farsante com lampejos de sinceridade, pena que muitas vezes movidos pela covardia.

A vida segue e você segue junto. Cria uma reputação, constrói um estilo de vida, granjeia até admiradores, enfim, você parece, aos olhos do mundo e aos seus também, que deu certo. Você é um sucesso!
E de tão envolvido nesse processo, você esquece ou perde o contato com aquela sua natureza que não desprezava os desditos, os estalos por trás dos acontecimentos e da forma como eles eram contados. Você até que ainda tem uma queda por eles, mas não lhes dá ouvidos. E quando dá, é sempre em algum momento crucial do jogo, no qual você não quer e não pode perder.

Nessas horas, você se enxerga no outro. Você vê nele os seus antigos medos, o suor gelado da vergonha alheia tem um cheiro muito familiar para você. As palavras, as tentativas, tudo tem a sua antiga cara. O outro é você mal-acabado, sem alinhavo. Você sabe por onde ele se equilibra, você conhece os becos, as vielas, os esconderijos. Mas você não lhe dá passagem. Seu prazer é aniquilá-lo. Como quase fizeram com você. Ou fizeram, mas você ainda não se deu conta.

E naqueles momentos em que você pensa que pode tudo e se delicia com isso, infelizmente você dá o maior vacilo: mostra a cara, mesmo que de relance. Você cometeu a besteira de achar que pode ser farsante a vida inteira... Aí você nega, faz que chora, desconversa, tenta desqualificar quem te contradiz, debate-se em busca da máscara que, de tanto que lhe é cara, tomou o lugar da sua própria.

Nessa hora, claro, virão em socorro os seus aprendizes, seus admiradores, os que te amam sem a voz do bom senso, os que te defendem ou por cegueira ou por convicção. E você respira e se apóia nesses ombros. E se recompõe porque a vida é muito curta e você terá sempre ao seu alcance o poder da negação bem fundamentada e endossada.

Não que você seja mau, você não é. Não que você não seja uma pessoa legal, até pode ser. Eu entendo perfeitamente a sua falta de assunto, o seu silêncio ressacado. Compreendo a sua tentativa de se reconstruir, de se reerguer. A única coisa que lamento é que você volte de tudo isso exatamente igual, com as mesmas couraças, com a mesma retórica profunda, mas ao mesmo tempo oca, com as mesmas técnicas de ilusionismo sem perceber, meu caro, que você é quem está dentro da cartola e não o contrário.


Fotografia: Flickr

4 comentários:

KS Nei disse...

Os vôos por Brasil ida e volta passam pelos EUA e não dava pra carregar maracujina liquida nem na bagagem. Fui aí, voltei com pedrinhas.
Dá nada não.
Mas uma canecada de camomila me derruba zzzzzzz.

Anônimo disse...

Pessoas assim quase nunca mudam,a carapaça,de tão bem forjada,já nem sai mais.
E o duro é q eles têm consciencia disso,o q não deixa de ser mais doloroso.E tome porretada em quem está por perto...

bjos e []s

Ivette Góis

Anônimo disse...

Caramba!
Se bem entendi o cara foi sendo diluído aos poucos até não restar nada.
Cá pra nós eu acho é que ñ entendi (quase)nada.
Sério, tem hora q eu acho tu muito intelectual pra euzinha :)
Mas adoro ler tuas coisas.
Aliás, é uma das poucas de blog que eu leio e releio com gosto, confesso.
E não pela amizade, mas pela irreverência em suas variáveis.
bjão
Rê.

Anônimo disse...

"Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo ou todas as pessoas durante algum tempo, mas você não pode enganar todas as pessoas o tempo todo." (Abraham Lincoln)