segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Velhas tardes






Daniel Boone was a man, /Yes, a big man! /And he fought for America /To make all Americans free!...

Essa era a trilha sonora das tardes de minha infância, lá pelos idos de 1970 - era a música de um seriado, que contava as aventuras de Daniel Boone, personagem verídico da história da colonização norte-americana, no século XVII.

Daniel Boone foi um dos mais importantes colonizadores do Kentucky e a série televisiva mostrava sua luta pela sobrevivência e da sua família em meio aos índios, bandidos e aventureiros inescrupulosos, animais selvagens, invernos rigorosos etc., tudo isso temperado com altas doses de heroísmo, como não poderia deixar de ser.
Lembro perfeitamente das personagens: o próprio Daniel, Rebecca (sua esposa), Jemima e Israel (filhos), o índio Mingo e Cincinnatus, o dono da taberna.

Todo dia, às cinco horas da tarde, começava o seriado, exceto aos sábados e domingos.
Eu tinha uns sete, oito anos e esperava ansiosamente por esse momento. Claro que hoje, dispondo de informações sobre o que foi a colonização norte-americana, da maneira cruel como dizimaram as populações indígenas, a visão crítica me impediria de acompanhá-lo. Só esse trechinho da música de pronto daria respaldo para uma crítica social justa já que, para dar a liberdade aos brancos colonizadores, foi preciso assassinar, roubar, saquear, tomar terras e empurrar os primeiros americanos, que lá viviam em paz e liberdade, para reservas que, na maioria das vezes, eram desprovidas de recursos naturais adequedos à sua sobrevivência.

Mas aos sete, oito anos da minha infância, a vida era bem mais simples, menos cheia de discursos politicamente corretos. A distinção entre bandido e mocinho era muito clara. O Bem sempre vencia o Mal e, no final, todos eram felizes para sempre. Bons e velhos tempos... E melhor ainda era poder acreditar nisso cegamente. Rir com aquelas piadas bobas, chorar com os fracassos e perdas, com o duro inverno que espreitava a cabana de madeira, que era a casa dos Boone. Velhos e bons tempos aqueles...
E junto comigo estava meu avô, minha companhia constante nessas tardes cheias de índios, mocinhos, bandidos e bang bang. Tínhamos um acordo tácito.

Assim que minha avó ligava a TV, eu ia até o nosso quintal e gritava: Bobô, Daniel Boone!
Ele geralmente estava na Outra Casa – era assim que todos chamávamos a construção que ficava no fundo do nosso quintal e que lhe servia de tipografia, lugar de descanso e escritório.
Era uma pequena casa de um quarto, saleta, copa e cozinha, irremediavelmente cheia de livros, material de trabalho, uma rede onde descansava, muitas estantes, seus apetrechos de caça, suas coleções de moedas e selos, seus discos, suas escondidíssimas revistas Pasquim, que eu lia clandestinamente, enfim, era uma outra casa mesmo, onde hoje sei que realmente vivia o meu verdadeiro avô, sempre tão reservado na casa da frente, mas tão cheio de gostos e individualidades que só hoje vou descobrindo aos poucos, à medida que essas lembranças resolvem me visitar. E lá vinha ele. E eu ficava nervosa se ele atrasasse. Mas isso quase nunca acontecia. Meu Bobô sempre fez as minhas pequenas e grandes vontades, quando e como pôde.

E assistíamos ao tal Daniel Boone.

Uns dez minutos depois, passava o pipoqueiro, sempre na mesma hora, na rua em que morávamos. Ele também sabia que tinha um papel importante nessa rotina: não passava da nossa casa sem antes parar e dar suas buzinadas. Então, eu abria a porta e com duas moedas, cujo valor nem lembro mais, pegava dois sacos de pipoca. Uns sacos cor de madeira, e elas eram deliciosas. Até hoje ainda gosto dessas pipocas e, apesar do sabor não ser mais o mesmo, elas ainda evocam, por uma fração de segundos, um pouco daquela felicidade diária.

Lembro que meu avô fazia alguns comentários que eu não entendia. E não adiantava que eu lhe perguntasse. Ele não os repetia ou explicava, apenas fingia que não tinha me ouvido e seguia vendo o seriado. Ele não queria mesmo que eu entendesse, pois sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu perderia aquele encanto ingênuo com o qual via o mundo através das aventuras de Fess Parker. Era o meu mundo tão cheio de pequenas alegrias, de tantos livros em estantes abarrotadas, de revistas proibidas, de conchas trazidas de longínquas praias...
Aquela Outra Casa, a qual eu pertencia mais do que a qualquer outra que um dia eu viesse a ter.

12 comentários:

Giovanni Gouveia disse...

Impressão minha, ou é um Déjà vu?

De qualquer forma, eu queria mesmo era aprender a partir uma árvore ao meio de uma machadada só...

nuzlv

Kenia Mello disse...

Não é impressão sua, não, Gio: esse texto meu foi escrito em 2006.
(Se você tivesse lido o post de baixo... :P)

Anônimo disse...

Eu me lembro sim de já ter lido esse texto...
E desse avô, que sabiamente estabelecia os limites da inocência, mesmo diante de tamanha curiosidade infantil.
Linda história!
bjão
R.

Giovanni Gouveia disse...

"Se você tivesse lido o post de baixo... :P"

POis é, a pressa é inimiga da perfeição...

Depois que postei o comentário que vi que havia o tal "post abaixo", desculpaê...
Mas, 2006??????? o tempo tá correndo muito depressa...

bglihy

Anônimo disse...

esse texto é nosso velho conhecido,dos tempos do flog.Sempre tocante,sempre lindo,gosto muito.
Foi um belo presente do maridão heim?

Bjos e []s

Ivette Góis

Beth/Lilás disse...

Adorei! Adoro ler nossas lembranças, isto nos faz reviver, nos faz mais leves e sentir que tivemos tanta vida bonita e tranquila. Estes tempos eu vivi também com meus irmãos e a famosa sessão da tarde com filmes e seriados que a gente amava e que, realmente não interessava se era ou não politicamente ocrretos - a gente nem podia imaginar nada daquilo.
Mas a gente era feliz e não sabia, né mesmo!
Bons tempos, belos dias!
Obrigada por nos fazer relembrar isto através deste pecioso texto.
Beijos cariocas

KS Nei disse...

Vez por outra a musiquinha do Daniel Boone me invade a cachola. Tem a da Familia Walton que tambem me cutuca.

Kenia Mello disse...

O texto foi escrito em agosto de 2006, Gio, e ainda lá no velho flog.
Eu até o trouxe para cá, mas como ainda não tive coragem de colocar os marcadores, anda perdido lá no mês de início do blog, janeiro.
Sim, o tempo está voando...

Anônimo disse...

eu via "o ultimo dos moicanos"
nao sei se foi antes ou depois
acho que o alemao esta' me pegando

Elaine Bittencourt disse...

Oi! Eu tb assistia Daniel Boone! Fiz um post sobre os shows da minha infancia aqui:
http://elainebittencourt.blogspot.com/2008/05/remember-when.html

HUGS!

Elaine Bittencourt disse...

Kenia, I can't believe I forgot The Monkees! Their theme song gets stuck in my head from time to time to this day!

Kenia Mello disse...

José Luís, só agora que a lerda criatura aqui sacou quem é o alemão a quem você se refere! Hehehe
No meu caso, é defeito de fábrica mesmo. ;)

Elaine, seja bem-vinda! Ô povo pra ser chegado em tranqueira somos nós, hein? ;)