quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Aquela casa

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A felicidade morava naquela casa comprida e estreita, de telhado alto.
Naquela rua antiga de muitas casas iguais àquela.
Rua de existência pacata e de conversas corriqueiras, nas quais todos se conheciam e se entendiam, bem ou mal.
Naquela casa pairavam cheiros de cozinha em movimento, de água de colônia e de livros guardados.
Eram cheiros daqueles que acompanham quem os sente a vida inteira, cheiros que se metamorfoseiam em lembranças.
A velha figueira, o balanço preso nela.
As plantas no quintal viravam floresta onde bonecos de papel moravam até que a chuva viesse e os dissolvesse.
Os banhos de tanque, que naquele tempo parecia imenso.Tudo isso envolto num silêncio suave e quase sagrado. Havia ali uma certa solenidade nos modos e uma grande certeza de que o mundo além das suas portas estreitas era muito vasto, mas também um lugar perigoso, onde a calma muitas vezes era tão somente sinal de tormenta a caminho.
Entre as altas paredes velhas, mundos se misturavam e fundiam.
A velha radiola, as almofadas, os cafés na varanda.
O banho frio, a cama sempre quente com suas noites que começavam cedo.As caixas fechadas no sótão tão cheias de atraentes segredos.
O barulho longínquo da rua abafado pelas cortinas pesadas do janelão.
É um lugar que não existe mais em parte nenhuma, perdido que está na poeira do tempo.
Retorno não há porque deixá-lo foi escolha sem volta, daquelas que se faz sem levar em conta quem somos.
Onde foi plantada aquela casa ficou apenas uma saudade mansa, que desperta somente quando o cansaço bate e, com ele, o desejo de voltar e adormecer na velha cama, envolta pelas rendas puídas do cortinado branco.

Kenia Mello

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