quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Alvo

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Ele sempre soube que era um alvo fácil.
Descobriu isso desde que nasceu ou talvez antes mesmo.
E foi crescendo com os olhos baixos, a voz pra dentro, sem tons muito acima ou abaixo.
Só respondia o que lhe perguntavam, só afirmava com mínimos pontos de exclamação.Vivia numa semi-escuridão que não incomodava, todos o sabiam presente mesmo que no lusco-fusco, nas frestas, nas beiradas, nos espaços que não precisavam ser preenchidos.
Mas um dia ele descobriu.

Uma vantagem houve em viver nas sombras: descobriu a chave que abriria a porta da sua imobilidade, que o levaria do reino vegetal à terra dos que antes lhe deixavam apenas seus sobejos.

Descobriu que as pessoas têm dentro de si um segredo, palavras-chave que podem ser acionadas em momentos oportunos: elas necessitam ouvir certas coisas.
Precisam de um afago que não pode ser feito com as mãos ou os olhos: carecem que seus ouvidos sejam devidamente saciados.Precisam ouvir o que pode aplacar seus medos e poucas certezas.

Havia, no entato, obstáculos.
Mas ele prontamente tratou de atilar seus silêncios, agora pouco inofensivos, e escutou mais, viu mais, examinou melhor as entrelinhas e as palavras deixadas pela metade, seus antigos presentes de Natal...
E fez tudo isso como antes: sem ser ouvido, visto ou sequer levado em consideração. Para os outros, ele continuava a ser o que sempre fora...

Mas a vingança estava em curso e sua faca era diariamente afiada...

Percebeu que seu maior obstáculo não era chegar ao segredo deles -- uns eram mais fáceis, outros, mais taciturnos... Com esses últimos ele deveria ser mais sombra ainda, sequer respirar. Quem, afinal, poderia ficar em guarda diante dele, uma criatura tão pouco significante?Não, seu maior obstáculo era a pressa. Ela não condizia como o que criara de si para o mundo nem com a natureza da sua empreitada.

Precisava de tempo e calma.

E teve tudo que queria, enfim.

Um belo dia, sem que ninguém soubesse ou visse, roubou todas as palavras, os segredos, as sombras, os sobejos, o seu lugar na sala. Colocou-os na pequena mala de poucos pertences e bateu a porta sem olhar para trás.

Deixou um vácuo enorme com o qual nenhum deles sabia lidar. Quem mais poderia suportar silêncios constrangedores? Quem mais se contentaria com as sobras, as migalhas, o lugar qualquer na sala de estar?

Quem mais poderia ouvir tudo ou nada sem que fosse preciso dar uma explicação racional?Sentiram-se incomodados em seus lugares marcados, nas suas histórias de sempre. Quem mais poderia fingir que era a primeira vez que contavam?

E todo ódio e aridez vieram à tona.

E eles se feriram e se morderam e se mataram dia após dia, sem que fosse possível dizer um ai, soltar um grito de agonia ou socorro.

Estavam mudos e assim permaneceram até que, atraída pelo cheiro forte e nauseabundo, a luz do sol entrou pelas cortinas mofadas e inundou aquele mundo subterrâneo todo.

Do lado de fora, ele sorria com certa tristeza.
Não se gabava do seu feito como antevira em sonhos úmidos e recorrentes.
Apenas esboçou um sorriso novo, diferente daquele que era obrigado a dar diante de algum ato que, vindo deles, ultrapassasse um pouco a linha miserável da obrigação.

Era um sorriso estranho, de saudade... Porque ele descobrira que o mundo lá fora não era muito diferente.
Afinal, ele sempre soube que era um alvo. A diferença é que agora usava isso a seu favor.

Kenia Mello

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