quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Mestre Lau, com carinho

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Fui uma pessoa criada por pessoas antigas.
E pessoas antigas têm costumes antigos.
Lembro que a minha avó costumava seguir rigorosamente os seus impulsos no que diz respeito a não desafiar o tempo.
Cansei de ouvi-la dizer que iria visitar algum parente ou amigo porque sonhara com ele de véspera e, por isso, acreditava que poderia ser alguma espécie de chamado. O motivo não interessava. Doença, saudade, morte, aperreio... Isso não era muito importante. Urgia que apenas fosse.
Ou então, era aquele zelo com alguém doente: não conseguia passar três dias sem notícias da pessoa em questão sem que isso não lhe despertasse temores, culpas e alguma inquietação.
Eu, criança, achava tudo aquilo meio maníaco, aquela sofreguidão toda me parecia desproporcional...
Na minha inocência infantil, não percebia que o tempo tinha para nós significados bem distintos.
Sem contar que no antigo daquele tempo da minha avó, havia mais espaço para reter com firmeza e proximidade os cordões que a uniam àquelas muitas pessoas. É o que hoje em dia, moderna e superficialmente, chamamos de conexões pessoais. Cresci assim, num ambiente onde as pessoas se visitavam, preocupavam-se com as outras, mesmo não sendo tão próximas ou não tendo, necessariamente, algum grau de parentesco.Vivia-se assim. Dava-se atenção aos sonhos, às lembranças que abriam a porta sem razão aparente. Havia muito mais tempo nesse antigo tempo que em que vivi.
E não precisava ter algum afeto envolvido, não.
Lembro de algumas ocasiões em que o motivo das preocupações era alguém por quem minha avó às vezes até nutria algum sentimento menos nobre: alguma vizinha com quem não falava havia anos, alguma amiga cuja convivência fora interrompida por uma mágoa calada, mas ainda dolorida...
No entanto, bastava que algum sonho tenebroso a espreitasse ou mesmo que soubesse por terceiros que a criatura perdera o marido, quebrara uma perna ou simplesmente quisera vê-la por causa também de um sonho da mesma forma assustador, que lá ia ela, despojada das antigas rusgas e senões.
Porque ela sabia que amanhã poderia não ter outra chance. Era preciso aproveitar as deixas que a vida dava e fazer o que tinha de ser feito.
Aquilo era o que ela acreditava ser justo e certo. Talvez não por convicção, bem sei, mas por respeito e temor. Ela tinha a certeza de que não dá para blefar com o tempo...
Hoje sei que essa urgência é resultado da percepção do próprio envelhecimento.
É assustador ver pessoas, lugares e objetos sendo tragados pelo tempo. É inevitável que se sinta medo. Medo das perdas, por mais que elas já tenham sido vividas.Sempre haverá algo que nos é mais caro hoje, que não tínhamos ontem e que, com certeza, não teremos amanhã.
Haverá, a cada dia que se passa, algo a deixar para trás, a despeito do que se tenha em troca ou do que sobre e possa ser reconstruído.
Passei o dia inteiro remoendo essa certeza, a qual já vinha experimentando há algum tempo.
E não sem razão.
Quando damos as costas a uma parte da nossa vida, por motivos os mais variados, às vezes sentimos vontades e saudades que insistem em nos levar de volta aos velhos lugares e pessoas, os quais, por egoísmo ou ingenuidade, julgamos imutáveis, fincados nos mesmos pontos em que os deixamos.
Nos últimos anos, tenho sentido uma vontade imensa de reencontrar algumas dessas pessoas que ficaram lá atrás na poeira dos anos.
Mas confesso que não tenho aquele talento para as urgências que tinha a minha avó.
E hoje me dei conta disso de maneira clara. Em meu favor, teria muitas justificativas a dar, desculpas aceitáveis, mas prefiro assumir meu desleixo com o tempo. Desafiá-lo parece-me agora algo impensável. Traquinagem de adolescente. Começo a sentir a necessidade de curvar-me e reverenciá-lo. Mea-culpa.
Uma daquelas pessoas a quem eu queria muito rever e abraçar, mandou-me, por terceiros, o recado da impossibilidade do nosso encontro. O tempo esgotou. Não fui diligente o suficiente para buscá-la, apesar de saber que, com algum esforço, poderia ter conseguido.
E o preço da minha falta de urgência é esse: o sentimento de vazio imenso que a notícia da sua partida me trouxe.
Com você, parte também um pedaço da minha adolescência. Ficam, no entanto, lembranças tão nítidas que mais parecem ter sido de ontem...
Lembro de um dia em que você precisou se ausentar da sala de aula e me entregou uma lista imensa de equações para que eu as escrevesse no quadro negro (sim, sou desse tempo!) e depois resolvesse para os colegas. Logo eu que odiava matemática... Mas com você eu amava! Aprendia tudo que a sua figura irreverente e inquieta ensinava. Binômios, polinômios, logaritmos... Você fazia, por mágica, aqui tudo entrar na minha cabeça. Acho que isso acontecia porque você era estranho e deslocado como eu. Havia em você mais diferenças que semelhanças, mais contrastes que simetrias. E eu sempre fui assim. Acho que você olhou para mim por dentro e click!, fez-se um elo!
Lembro de você com sua barba enorme, com sua estatura também imensa, seus eternos jeans. Lembro dos seus olhos grandes e úmidos. Negros. Dali saíam chispas de raiva em alguns momentos -ou seria loucura contida? -, mas também ternura e compaixão.Tenho vivas na memória as últimas palavras que você me disse. Em tom confessional. Eram assim os seus conselhos. O jeito de dizer de quem sabe que na vida só aprendemos depois de muitas porradas. Eu pretendia relembrá-las quando nos reencontrássemos. E contar o que aconteceu depois, nas muitas voltas que a vida me deu. Agora suas palavras viraram segredo. Ninguém mais as pode ouvir. Viraram nossa propriedade.Você sabia de muito mais coisas, Lau. Eu mal sabia da vida...

Kenia Mello

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