quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Velhas tardes

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“Daniel Boone was a man, /Yes, a big man! /And he fought for America /To make all Americans free!...”

Essa era a trilha sonora das tardes de minha infância, lá pelos idos de 1970.
Era a música de um seriado, que contava as aventuras de Daniel Boone, personagem verídico da história da colonização norte-americana, no século XVIII.
Daniel Boone foi um dos mais importantes colonizadores do Kentucky e a série televisiva mostrava sua luta pela sobrevivência e da sua família em meio aos índios, bandidos e aventureiros inescrupulosos, animais selvagens, invernos rigorosos etc., tudo isso temperado com altas doses de heroísmo, como não poderia deixar de ser.
Lembro perfeitamente das personagens: o próprio Daniel; Rebecca, sua esposa; Jemima e Israel, seus filhos; o índio Mingo; Cincinnatus, o dono da taberna.

Todo dia, às cinco horas da tarde, começava o seriado, exceto aos sábados e domingos.
Eu tinha uns sete, oito anos e esperava ansiosamente por essa hora do dia. Claro que hoje, dispondo de muitas informações sobre o que foi a colonização norte-americana, da maneira cruel como dizimaram as populações indígenas, seria politicamente incorreto assistir a um programa desses.
O pequeno trecho da música de pronto daria respaldo para uma crítica social justa já que, para dar a liberdade aos brancos colonizadores, foi preciso assassinar, roubar, saquear, tomar terras, e empurrar os primeiros americanos, que lá viviam em paz e liberdade, para reservas muitas vezes desprovidas de recursos naturais adequedos à sua sobrevivência.
Mas aos sete, oito anos da minha infância, a vida era bem mais simples, menos cheia de discursos politicamente corretos. A distinção entre bandido e mocinho era muito clara. O Bem sempre vencia o Mal e, no final, todos eram felizes para sempre. Bons e velhos tempos... E melhor ainda era poder acreditar nisso cegamente. Rir com aquelas piadas bobas, chorar com os fracassos e perdas, com o duro inverno que espreitava a cabana de madeira, que era a casa dos Boone. Velhos e bons tempos aqueles...
E junto comigo estava meu avô, minha companhia constante nessas tardes cheias de índios, mocinhos, bandidos e bang bang.Tínhamos um acordo tácito.

Assim que minha avó ligava a TV, eu ia até o nosso quintal e gritava: Bobô, Daniel Boone!
Ele geralmente estava na Outra Casa – era assim que todos chamávamos a construção que ficava no fundo do nosso quintal e que lhe servia de tipografia, lugar de descanso e escritório.
Era uma pequena casa de um quarto, saleta, copa e cozinha, irremediavelmente cheia de livros, material de trabalho, uma rede onde descansava, muitas estantes, seus apetrechos de caça, suas coleções de moedas e selos, seus discos, suas escondidíssimas revistas Pasquim, que eu lia clandestinamente, enfim, era uma outra casa mesmo, onde hoje sei que realmente vivia o meu verdadeiro avô, sempre tão reservado na casa da frente, mas tão cheio de gostos e individualidades que só hoje vou descobrindo aos poucos, à medida que essas lembranças resolvem me visitar. E lá vinha ele. E eu ficava nervosa se ele atrasasse. Mas isso quase nunca acontecia. Meu Bobô sempre fez as minhas pequenas e grandes vontades, quando e como pôde.

E assistíamos ao tal Daniel Boone.

Uns dez minutos depois, passava o pipoqueiro, sempre na mesma hora, na rua em que morávamos.
E ele também sabia que tinha um papel importante nessa rotina: não passava da nossa casa sem antes parar e dar suas buzinadas. Então, eu abria a porta e com duas moedas, cujo valor nem lembro mais, pegava dois sacos de pipoca. Uns sacos cor de madeira, e elas eram deliciosas. Até hoje ainda gosto dessas pipocas e, apesar do sabor não ser mais o mesmo, elas ainda evocam, por uma fração de segundos, um pouco daquela felicidade diária.
Lembro que meu avô fazia alguns comentários que eu não entendia.
E não adiantava que eu lhe perguntasse. Ele não os repetia ou explicava, apenas fingia que não tinha me ouvido e seguia vendo o seriado.
Ele não queria mesmo que eu entendesse, pois sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu perderia aquele encanto ingênuo com o qual via o mundo através das aventuras de Fess Parker. Era o meu mundo tão cheio de pequenas alegrias, de tantos livros em estantes abarrotadas, de revistas proibidas, de conchas trazidas de longínquas praias...
Aquela Outra Casa, a qual eu pertencia mais do que a qualquer outra que um dia eu viesse a ter.

Kenia Mello

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