quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Ode aos compulsivos guardadores de bugingangas

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Pequenas caixas, contas de colar, bilhetes, folhas secas, mechas de cabelos enroladas por uma fita azul,
Uma concha do mar quebrada, um recorte de revista, um olho cego de boneca, um carretel de linha,
Uma pulseira, um pequeno broche, um vidro de perfume vazio
E uma folha de papel amarelada
Onde escritas estavam aquelas palavras
Deixadas assim ao acaso
Como se quem as escreveu fosse voltar algum dia e retomá-las de onde parou
O que a teria arrebatado?
Um chamado? Um barulho irregular? Porque de vontade própria é que não foi.
Como alguém pára assim, à queima roupa, de escrever aquelas coisas?
Não. Que ninguém é louco de se deixar partir em pedaços e depois simplesmente se esquecer de voltar.
Algo a deteve. Algo talvez maior que aquelas palavras.
E aonde ela foi? O que fez? Por que não retornou à folha e ao lápis?
O que lhe interrompeu o regresso?
Só sobraram as palavras já desbotadas e os pequenos objetos.
Eles são pistas, são signos, são rastros dessa pessoa.]Como interpretá-los sem ser arrebatado por eles?
Como entendê-los resistindo ao desejo de lhes enfeitar a existência, dando-lhes uma aura que nunca tiveram?
Porque são objetos velhos e pronto. Sequer são velhos objetos - se é para largar o tom de devaneio, que se comece pela sintaxe, então.
Por que não encarar as palavras deixadas à toa como um ato de própria vontade?
Nem tudo nasce para florir ou enfeitar, mas que mania de amenidades!
Um pedaço de papel largado em meio a objetos sem uso. Eis o que são.
Por que deveria haver uma realidade sob a superfície? Por que haveria ali uma vida que fora interrompida?
Um ato banal, uma mania mofina de guardar cacos velhos, um princípio de loucura, quem sabe?
A vida não precisa ser dourada. É tempo de aceitar seu cinismo indisfarçado.
É hora de jogar no lixo as caixas velhas, cheias de objetos inúteis, que teimam em permanecer por bem das suas histórias.
Mas que histórias? Em breve elas sequer existirão. Que sejam libertadas agora, enquanto o ato seja de decisão e não de assepsia.

Kenia Mello

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