quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

3 de agosto

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Mais uma data cheia de saudade. Muita saudade mesmo...
Vinte cinco anos atrás, foi a vez do meu amado avô, Belmiro, despedir-se de nós.
Eu tinha quatorze anos na época, mas a minha alma bem mais velha viu sua partida como a concretização de um pesadelo recorrente.
Talvez por ele ser mais velho e frágil que a minha avó, sempre tive um medo secreto, uma espécie de sobressalto, que me dizia com uma urgência constante que não haveria muito tempo...
É esse o ponto cruel de se criar netos como se filhos fossem... O tempo não se importa de quebrar um coração que ainda não está afeito a esse tipo de revés...
Perder o pai ou a mãe (ou qualquer pessoa que simbolicamente os represente) é uma experiência extremamente dolorosa mas necessária.
Depois da dor tão funda, fica um vazio, um buraco no peito tal que qualquer sofrimento futuro já encontra um espaço de aceitação, de naturalidade e consolo. Tudo isso num coração que, uma vez partido, começa a reconhecer-se nos próprios cacos e recolhe-se como quem paga um tributo, oneroso mas obrigatório.
Falar dessa ausência hoje é algo menos doloroso ou talvez seja a natureza da dor diferente, menos adolescente, menos dilacerante. Quem sabe seja isso fruto de um acordo entre ela e o tempo, o antigo algoz.
O tempo, que nos deu tão pouco dos seus anos, resolveu se penitenciar, fazendo um afago desajeitado como querendo desculpar-se por tantos estragos...
Mas nem sempre foi assim. O vazio dos primeiros anos criou em mim uma vontade avassaladora de medir o mundo dos pés à cabeça, uma força desafiadora de tentar chegar em todos os meus limites, como se eu quisesse extrair da vida toda cota de sofrimento de uma vez, para não ter que baixar a guarda novamente e sentir essas coisas com as quais eu não sabia lidar.
E assim se passaram os anos. E o que ficou dessa perda toda foi uma serenidade que se aloja em algum lugar secreto meu e vive me dizendo, nos momentos mais difíceis, que qualquer dor pode ser bebida até o fim. Com calma e sem pressa porque, qualquer que seja ela, é imperioso que seja cumprida.
Na verdade, nós nunca nos separamos. Pena que só pude entender isso tanto tempo depois. Mas de nada adiantaria saber antes: eu não teria ido tão longe à sua procura e nada do que sou talvez fosse possível. Quem saberá?
E isso era tão verdadeiro, a nossa permanência juntos era tão real... Como eu não fui capaz de percebê-lo?
Houve momentos que senti sua presença de modo quase material, palpável... Mas isso já faz muito tempo.
Às vezes de forma mais intensa como nos sonhos em que você me dizia coisas que certamente fariam parte das nossas conversas, caso nossa convivência não tivesse sido interrompida.
Infelizmente já não sonho mais com você. Mas também não acordo mais agoniada, ferida, perdida. Tudo tem um preço e uma compensação...
Hoje, lembrando essa data, sinto uma distância tão grande entre nós... Vinte e cinco anos. Muito tempo. Fico pensando se o reconheceria se esbarrasse em você na rua. Porque o tempo consola, mas também apaga as feições de quem não vemos há muito. Ainda bem que ficaram vários retratos como esse em que você passeia ao lado da minha vó, fumando seu inseparável cigarro.
E é nessas horas que a menina que fui volta com toda força e pensa nesse impossível esbarrar na rua.
E vêm todas aquelas lembranças e, com elas, a minha espera na janela pra te ver chegar, quando você saía e demorava eternidades. Ao te ver voltando, dobrando a esquina da nossa rua, meu pequeno coração se enchia de festa e nessa trégua que me dava aquela tristeza futura tão certa, eu era feliz como qualquer criança pode ser.

Kenia Mello

Um comentário:

Anônimo disse...

Menina do céu!
Que privilégio fazer o primeiro comentário do teu blog.
E que privilégio tb ler finalmente teus escritos assim com essa facilidade, na hora que eu bem entender rssss! Hoje então, foi o meu café da manhã!
beijos
Regina