quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

O outro lado

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Quem me vê assim serena e clara, andando sempre com passos precisos e atentos ao chão,
Não me sabe criatura noturna, onírica e sombria que se abriga, secreta e silenciosamente, em desvãos, sulcos e frestas
De um coração selvagem, turbulento, sem calmarias previstas ou possíveis.
Um mar oculto a duras penas, às vezes plácido, às vezes revolto, que tem somente o brilho noturno da Lua
Como testemunha da sua existência solitária.
Esse mar, imenso e exausto, enterrado tão profundamente no peito,
Em noites de desassossego, sangra-me a pele
Em horas de calmaria, embala-me o sono em ondas.

Não, não me quero apenas luz e placidez.
Quero também essa metade indomável, livre
Por vezes confusa, anárquica e deslocada,
Que não espera nada que não venha de si
E que não se espanta com as velhas novidades que o vento lhe sopra.

Esse outro lado foi tecido e fiado sem que dele eu percebesse a existência:
Quando vi, já estava completamente imersa em suas águas, e pude sentir, nele e em mim,
Seu gosto salgado, sua força de correnteza áspera e ininterrupta.
Hoje sei que é ele que me mantém em terra firme
A despeito dos redemoinhos, das perdas, do mau jeito com que às vezes se faz presente
E que me deixa ferida, doente, amarga.

Tentando navegar no seu curso incerto que vou desvendando o meu também.
Vou colando pedaços que ficaram para trás, na poeira dos anos,
Vou percebendo que não dá para viver apenas de nuvens brancas e areia fininha
Porque a vida é furacão, galope e ladeira infinda.

Ao mergulhar nele sem medo, venho à tona um pouco mais velha e cansada.
No entanto, mais serena e calma, e sigo andando sempre com passos precisos e atentos ao chão...
E é assim que sou vista...
Contudo, sei que alguns olhos pequenos e úmidos
Desnudam-me com aquele velho sorriso de reconhecimento,
Com uma solidariedade muda e tácita que apenas os sobreviventes possuem
E eles sabem exatamente o que trago no peito
Porque são donos de mares secretos também.

Kenia Mello

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