sábado, 31 de maio de 2008
Desterro
Passei onze anos fora de Pernambuco (de 1987 a 1998) e de Recife, 13.
Morei em Belém do Pará, Rio de Janeiro e São Paulo.
Vinha uma vez por ano, geralmente nas férias de verão, me entupia de tapioca, feijão-de-corda, passa de caju e carne de sol, pegava um bronze em Porto de Galinhas, Tamandaré e Calhetas, revia parentes e amigos, e no fim das férias, já aborrecida com meio mundo de coisas, queria voltar para casa - e era com certo constrangimento que
eu dizia isso: a minha casa já não era mais aqui. No restante do ano, ficava um pouco de banzo, sentia falta dos lugares, da família e dos amigos, dos cheiros e sabores conhecidos. Mas novos amigos, lugares e sabores ocupavam seus espaços e a vida seguia em frente.
Outro dia comentava com Nei, que mora no Japão há 18 anos, o quão dividida fica a vida de uma pessoa que deixa o seu local de origem, seja mudando de cidade, estado ou país. Definitivamente, sair de casa é um ritual de passagem e ele compreende não apenas deixar a casa dos pais, mas também aquele momento em que você opta, levado pelos mais diversos motivos, por deixar a sua zona de conforto e tentar outros rumos.
Sem dúvida, a pessoa resultante dessas mudanças não pode ser igual àquela de antes de partir. Mas quem ficou muitas vezes não compreende isso. E quando se tem a felicidade (ou infortúnio, não sei) de voltar, muitas vezes você se choca ao constatar que por mais que tenha mudado, muitas pessoas ainda te vêem como antes, como se você tivesse congelado num hiato temporal.
Isso pode ser bom porque muitas vezes certas singularidades suas se perderam ou diluiram nas mudanças e você se surpreende com o que foi um dia e nem lembrava mais. Mas, por outro lado, você sente um certo desconforto diante da estagnação de quem te vê e não te reconhece mais. E isso só aumenta o seu sentimento de desterro.
Você não pertence mais a lugar nenhum e nenhum lugar mais lhe pertence, esse é o ponto. E por mais que você tenha perdido aquele medo inicial de bater asas e voar, por mais que você tenha a segurança e a certeza de poder viver e se adaptar a qualquer coisa, no fundo você sabe que voltar para casa é uma impossibilidade. A porta se fecha uma vez para nunca mais abrir.
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20 comentários:
Oi amiga... é incrível como você sempre consegue transcrever tudo que vai em meu coração, não moro em Recife desde 2003 e tudo que você escreveu traduziu um sentimento apertado do meu peito.
Obrigada por "me dar voz"
Betânia
Oi Kenia, sabe... eu morei fora também durante 10 anos, sendo que foi de 1993 a 2003, e compartilho desse sentimento do "antes" e "depois". Como sempre fui apegada a família, sempre que voltava de férias tinha aquele velho sentimento de "banzo", se é que tu me entendes... e o curioso também é perceber como algumas passagens da vida estão relacionadas a alguns lugares que passamos; é olhar um lugar e se lembrar de um certo fato que passou...aquele velho sentimento de nostalgia...por isto vale ressaltar aqui a importância da preservação do patrimônio histórico das nossas cidades, a perpetuação da cultura está exatamente no cuidado com nossos monumentos, enfim, a memória da nossa cidade. Parabéns pelo seu texto. bjs. Rê.
Kenia, eu acho que a gente constroi "uma casa" dentro de si mesmo. Nesta tudo poder ser seu, seja de onde for.
Acho que eu trouxe um pedacinho de Pernambuco para dentro da minha casa... um quadro de Ariano, umas cerâmicas de Caruarú, um caboclo de lança do mercado S.José, uma rede embaixo das árvores e outra dentro do invernadeiro...
Compro maracujá e faço feijao preto e bobó. Aqui se respira Brasil com as plantas dentro de casa, se escuta música nordestina, se fal Português.
Acho que quando tivermos nossa casa aí ( é um plano nosso ) teremos coisas espanholas nas paredes, comeremos paella de vez em quando e ouviremos Estrela Moriente cantando um flamenco nas tardes de sábado...
O importante é ser feliz, seja onde for que estejamos. O banzo faz parte da felicidade de ser leve o sufiente para ir e vir pelo mundo. E isso eu sei que vc sempre foi.
Beijo
Complicado isso... Estava lendo e me lembrando que, na verdade, eu morei pouco em Recife. Quando criança/adolescente morei no Rio, em Belém e em Fortaleza. Depois que voltei, me casei e me mudei pra Maceió, onde passei dez anos. E agora estou nas Minas Gerais. Ô lonjura! De vez em quando dá um banzo mesmo. Mas, infelizmente, a vida nos "empurrou" pra cá. fazer o que?
Xerunda!
As paisagens é que fazem a gente, isso é fato.
O lance é aproveitar os dois lados do ònibus, na ida e na volta.
Há controvérsias e abruptos desencontros ideológicos e emocionais com pessoas que só váo (no meu caso), outras que só ficam e outras que nunca voltarão.
Eu não digo não a nada. Fiquei muito tempo no Brasil, morei 25 anos na maior cidade do país e estou aqui há 18 anos. Sei de quem fica, de quem nunca saiu e de quem nunca vai voltar. De fato, me dou melhor aqui com os que sabem de suas duas raízes (br e jp) e não estão nem aí com quem está dentro do ônibus.
Já disse, o que me importa é a janela, é ela que modifica o seu olhar pro corredor.
Nunca estive no Pernambuco, mas aprendi a amar tão intensamente como se nadasse todo dia no Beberibe.
Um grande amigo de infância é de Canhotinho, toda sua família, conheci todos em SP. Chorei muito na morte de Zé Feitosa, o pai.
Um grande amigo no Japão é do Recife, Dedé, descendente de japas e caboclos, um mix que carrega o sotaque e a saudade do feijão-de-corda da mãe.
E tem o som do Chico, da Nação, Cordel e Otto,que são pra mim o must do que acontece pelo mundo há mais de uma década.
E música sempre foi o melhor cartão de visitas pra mim.
Eu achava que meu gilbertofreyrismo era baiano por causa de João Gilberto e a Tropicália. Ledo engano, sou e sempre fui do Recife e da paulada do maracatu.
É o ônibus mágico da música do The Who, banda inglesa. Nunca estive, me considero e só tenho como referência a trilha sonora, que é o abstrato mais invisível e concreto possível.
Nessa dicotomia, piso descalço em Pernambuco.
Sobre seu último parágrafo, acho que também, depois das asas abertas, todas portas se abrem para nunca mais se fechar.
Kênia, você acertou em cheio. Eu me identifiquei completamente com o seu texto: nasci em Recife, aos 8 anos vim para Maceió, aos 18 fui para Belém, aos 27 voltei para Maceió e aqui estou.
Meu pai, aqui, é conhecido como português; quando vai a Portugal, é "o brasileiro".
Quando viajo para um congresso médico, encontro conhecidos e amigos e aí bate a dúvida cruel: de onde conheço esta figura? O pior é que as pessoas sempre se lembram direitinho de mim, o que aumenta a minha saia justa...
Ter várias "pátrias" é ter todas e não ter nenhuma; mas tenho a certeza que a experiência de vida vale a pena...
"Nunca estive no Pernambuco, mas aprendi a amar tão intensamente como se nadasse todo dia no Beberibe."
Rapaz, se você mergulhasse no Beberibe, nunca mais iria querer saber de Pernambuco... hehehe
É uma das possíveis vantagens (se é que realmente o seja) da globalização: não temos "a nossa casa", e não vamos mais à "casa dos outros". Agora temos a casa global. Perdemos a nossa propriedade sobre os locais e sobre tudo o que nos rodeia. Agora tudo é de todos.
Beijos
Concordo com o que o DJ disse, pois a globalização mexeu com isso também em nossas vidas.
O mundo parece que está virando uma grande aldeia.
bjks cariocas
To ligado, Bacurau, o Beberibe é o Tietê-com-praia.
Mas ainda assim PE é massa.
Sá e Guarabira:
"Meu lar, é onde estão meus sapatos..."
Nunca fui "desterrado", mas sou casado com uma, e filho de outra. De forma que eu conheço, mais ou menos, o sentimento.
Sometimes (desculpae, mas meu teclado não ta fazendo crase) fico me imaginando em outras terras, e já de cara me da da saudades das coisas que tenho aqui: Carnaval, amigos(as), família, segurança, identidade cultural...
Desisto de imediato...
"Rapaz, se você mergulhasse no Beberibe, nunca mais iria querer saber de Pernambuco... hehehe"
SE ele mergulhasse no Beberibe nunca mais iria poder querer...
Kenia, me vi quando morava em Brasília. Eu vinha aqui sempre no período carnavalesco, e quando chegava a quarta-feira de cinzas, eu ficava num faniquito danado pra voltar pra minha casa. Aqui já não era mais a minha casa. E quando fui devolvido e voltei de vez, a sensação foi essa mesma que tu descreves no teu texto...
Beijinhos!
...
Eu, com sol nos olhos e nó na garganta, já ia batendo minhas asas para outro lugar também, querida.
Mas não sei de qual direção veio um vento gelado e forte e acabei só (só: no duplo sentido) sendo arrastada para um lugar onde jamais pensei que pudesse um dia estar.
Ainda bem que perdi as asas mas continuei confiando nos meus pés.
Um beijo e uma ótima semana,
Bárbara
Querida, trouxe-lhe um aviso:
Estou delicadamente incorporando-a à minha rotina, agora é: Café, pãozinho com geléia, jornal e Leite de Cobra!
Êta coisa boa!
Viajar é muito bom, mas voltar pra casa é melhor ainda!
Isso de não pertencer a lugar nenhum e nenhum lugar te pertencer eu também entendo um pokito, já q saí de casa antes de debutar rssss tendo sido meio cigana durante grande parte da existência.
E é incrível como isso nos confere uma experiência única, imprimindo em nosso coração a certeza de que somos meros peregrinos...
bjos
Rê
R.
Repórter Bacurau:
Só complementando:
Faz idéia ele nandando no Beberibe? e o pior... pra quem mora no Japão... Aff, só de pensar já pegou Dengue!!! (é só brincadeirinha...)
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