terça-feira, 29 de julho de 2008

Reforma ortográfica



O que era um subtema do post de ontem, Curtinhas, virou um tema bem legal para discussão, pois envolve um assunto do nosso interesse: a Reforma Ortográfica, que entra em vigor a partir de 2009. Como temos leitores portugueses no blog, creio que a discussão fica ainda mais interessante.
Para pegar o fio da meada, leia no post abaixo, Curtinhas, o tópico que gerou a discussão, e nos comentários também.

Ale, de Portugal, disse:

É verdade, Kênia. O que mais me revolta é isso mesmo: o meu país insistiu nesse acordo e ratificou-o. Mas o principal aqui, foi que esta insistência se deveu ao facto de países africanos e o Brasil quererem que isso avançasse. O Brasil estava com dificuldades em penetrar no mercado africano, todo ele um mundo por explorar, um
verdadeiro diamante por lapidar. E sabe-se que a principal dificuldade prendia-se com a língua e com a escrita.
Os africanos escrevem (quando temos a sorte que isso aconteça) em português lusitano, e os produtos culturais brasileiros têm pouca saída lá. Em troca, venderam a banha da cobra aos portugueses e prometeram que as nossas coisas se vão vender mundo afora, etc. Isso tudo é um mito! Saramago sempre vendeu em PT-PT, Fernando Pessoa idem, Lobo Antunes ibidem. A música portuguesa não deixará de ser o que é, o PT-PT continuará a ser falado com o mesmo sotaque. Nada muda! Só a nossa forma de escrever para que o Brasil penetre em África.

Isso vem ainda na sequência dos acordos comerciais e das parcerias que o Brasil pretende ampliar com os africanos. Ou achas que a última CPLP, de há menos de uma semana, beneficiou Portugal? Por algum motivo os brasileiros tinham muito interesse nisso. O Brasil está a ficar cada vez mais esperto e Portugal, para minha tristeza, cada vez mais estúpido e submisso. Chegou a vez do Brasil nos vender os pichebeques e levar o ouro. África significa muito dinheiro, desde o petróleo, até ao mercado cultural. Portugal já significou a ponte que pode ligar o Brasil a África. Agora, aos poucos, o Brasil faz a sua ponte e um dia deita abaixo a ponte lusitana. É triste, mas o meu país é mesmo estúpido...



Pelo que você escreveu, Ale, fica a impressão que o Brasil, o neo-imperialista, buscou essa Reforma para tirar vantagens comerciais de Portugal e África. Só que não partiu do Brasil a iniciativa da unificação e adiamos a assinatura por bastante tempo, esperando a decisão dos demais países, especialmente de Portugal.

A sua exposição mais parece uma projeção: o que Portugal fez em termos de colonização (e conseqüente exploração) é agora motivo de crítica e mágoa nacionalista. É a encarnação da antiga personagem portuguesa que, vivendo de um passado de glórias e ao mesmo tempo ciente da perda do poderio imperial, assume uma postura saudosista, que mistura revolta, tristeza e soberba intelectual.

Ora, a língua é um dos aspectos que confere soberania a uma nação, mas isso não a torna (a língua) propriedade exclusiva dessa mesma nação. Se assim fosse, vocês teriam de ser ver com os remanescentes romanos, pois o português, sendo a Última Flor do Lácio, é fruto das inúmeras modificações que o latim sofreu, na forma do sermus vulgaris, até se tornar a língua portuguesa. A Inglaterra teria de tomar satisfações ao inglês falado nos Estados Unidos, mas não sem antes prestar contas aos descendentes dos celtas, francos e germânicos, que foram a base do idioma inglês. Exercício estéril e sem cabimento cujo objeto, posto que cultural, não pode ser reivindicado da mesma forma que o espaço aéreo ou marítimo de um país.

Grosso modo, por entender que a língua é um organismo vivo e em constante evolução, sou contrária a essa unificação. Pode ser purismo da minha parte, mas creio que esse caráter libertário da língua enquanto processo é o que a torna única, rica e refletora dos momentos culturais, antropologicamente falando, de um povo.

Por outro lado, não acho de todo negativa a tentativa de unificação a que se propõe o acordo. No mundo globalizado de hoje, unificar significa simplificar, quebrar barreiras, conciliar. Para se ter uma idéia, na Holanda, o idioma é constantemente modificado em termos ortográficos para que se aproxime cada vez mais do padrão falado. E olhe que o alcance do holandês é mínimo comparado com a nossa língua, que é falada por aproximadamente 200 milhões de pessoas.

Prejuízos todos os países de língua portuguesa terão. Um exemplo: a revisão dos livros didáticos e paradidáticos visando a adequação às novas regras. Além dos gastos nos cofres públicos, essa conta será repassada para quem compra livros, ora essa.

Considero argumentos assim perigosos porque exacerbam sentimentos de rivalidade entre países que têm muito em comum, independente da unificação da língua. Eles incitam comparações, velhas mágoas e retaliações que não levam a nada. Todos nós sabemos a força cultural que o Brasil tem: nossa literatura, música, cinema, enfim, o que se produz no Brasil em termos gerais de arte é destaque mundo afora. Isso é fato. É natural, então, que o Brasil tenha mesmo interesse em se expandir mais ainda culturalmente, que mal há nisso? Da mesma forma, haverá a contrapartida para as literaturas, música, cinema etc. dos demais falantes da língua portuguesa.

Não estou com isso querendo dizer que o Brasil é melhor ou pior do que Portugal, apenas que, vendo por um outro ângulo e independentemente da minha opinião sobre a Reforma, a unificação pode ser um movimento positivo rumo a uma maior interação entre os falantes da língua portuguesa.

Update:

MEC: em 2013, nova ortografia será obrigatória

RIO - As novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa serão obrigatórias no Brasil, em caráter definitivo, a partir de 1 de janeiro de 2013, como mostra matéria publicada nesta terça no jornal O Globo. Haverá um período de transição: de 2009 a 2012 valerão tanto as normas atuais quanto as novas. É o que prevê minuta de decreto preparada pelo Ministério da Educação e que será analisada nos Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores antes de seguir à Casa Civil.

Leia o resto da matéria aqui.

9 comentários:

Anônimo disse...

realmente,as Curtinhas deram cria e espero q tenha sido via cesária pq o resultado foi grande.rsrsrs

Só posso concordar com vc,especialmente qdo diz q a língua não é propriedade exclusiva de um país,se fosse assim,não haveria os vários idiomas com suas particularidade.Seria algo como a Torre de Babel ao contário:uma chatice só!rsrsrs

Bjos e []s

Ivette Góis

Giovanni Gouveia disse...

"Ora, a língua é um dos aspectos que confere soberania a uma nação, mas isso não a torna (a língua) propriedade exclusiva dessa mesma nação. Se assim fosse, vocês teriam de ser ver com os remanescentes romanos, pois o português, sendo a última Flor do Lácio, é fruto das inúmeras modificações que o latim sofreu, na forma do sermus vulgaris, até se tornar a língua portuguesa."

Não nos esqueçamos que nossos irmãos galegos reivindicam a paternidade de nosso idioma...
O que eu digo é que, concordando com o ponto de Kenia, sendo uma língua viva, o Português tem-se adaptado, ao longo dos anos, à sua própria evolução, e essa evolução, pós liberdade do Lácio, e posterior liberdade da dominação moura, deve-se tão simplesmente ao próprio espírito aventureiro dos lusitanos. Não por acaso é Camões quem inaugura o português moderno, bem próximo ao português contemporâneo...
Claro que não vou conseguir, de imediato, adaptar-me tão facilmente, como disse no post do Batman "I'm too old for changes".
O que me dá arrepios é escrever de forma similar àqueles que eu criticava quando de meu contato primário com o léxico... (entrei na escola em Fevereiro de 1972, portanto, dois meses após a reforma)...

thszlrsh

Giovanni Gouveia disse...

Lembrei que sou conterraneo de Manuel Bandeira...

"A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo
na língua errada do povo,
Língua certa do povo!
Porque ele é que fala o gostoso
português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada"

mrmlh

ATG disse...

Kênia,

concordo com a tua opinião, e não quero que pareça que está aqui em causa algum tipo de nacionalismo. De facto, este acordo ortográfico foi celebrado em 1991, mas morreu porque entendeu-se que não ia acrescentar nada e cada um podia expressar-se da mesma forma que tinha feito, que todos entendiam.

A língua é, sem dúvida, um dos principais símbolos de soberania de um país. O Brasil faz bem em defender a sua parte, mas os portugueses não deviam ter cedido à pressão para o ratificar. O acordo estava morto e bem morto. 17 anos depois ressuscitaram-no! Não está aqui em causa nenhuma questão neocolonial, ou qualquer nacionalismo exacerbado. Apenas dá jeito ao Brasil penetrar noutros mercados e os portugueses mais uma vez subjugaram-se! Não fico furioso com o Brasil. O Brasil faz a sua parte e ainda bem que alguém defende aquilo que é seu. Fico, sim, furioso com o meu país que, para não variar, quer ser o mediador de conflitos, de interesses, de negócios, e no fim acaba por ser sempre instrumentalizado. A China já fez com Portugal o mesmo que o Brasil está a fazer agora, a sorte é que dados os laços culturais e históricos, o Brasil não corre o risco de nos dar um chuto e despachar-nos como fizeram os chineses. No entanto, ter o Brasil na liderança, custa-me a engolir! Não por falta de potencialidade ou capacidade do Brasil, até porque a tem, mas por incapacidade nossa. Sempre queremos agradar a todos e ser amigos de todos e acabamos por ficar para segunda opção.

Esta coisa de acordo, só é acordo para alguns políticos portugueses que vêem nisto um facilitador, mas é mais um complicador. Não faz sentido nenhum escrevermos "fato", quando escrevemos "facto". Fato, aqui, é "terno" no Brasil. Eu uso um fato. Imaginem esta frase: "O fato de termos que vestir fatos para determinadas ocasiões, obriga-nos a ter um sempre dentro do roupeiro". Que coisa mais ridícula! Não faz sentido nenhum! Será que além da escrita também vamos alterar o nosso dicionário e as palavras que utilizamos desde há séculos?! Agora aqui vem outra que não faz sentido: nós dizemos EgiPto e egíPcio. Vocês dizem "EGITO" e "EgíPcio". Ora, se não escrevem Egipto com P, porque é que escrevem "egípcio" e não "egício"?

Recuso-me actualizar o meu vocabulário e fiquei muito contente por saber que muitos escritores portugueses não passarão a escrever de acordo com esse acordo.

A questão da Inglaterra-EUA é completamente diferente. Eles têm palavras diferentes para a mesma coisa, e os casos em que muda uma letra contam-se pelos dedos de uma mão. Além do mais, cada um escreve tem a sua forma de escrever, não vão unificar nada, já por causa disso. Ainda assim, não estou a ver os ingleses sujeitarem-se a alterar radicalmente o seu vocabulário e a sua grafia por causa dos EUA. O tempo do "cachorrinho" do Bush, Tony Blair, já passou há muito...

Sou contra esta unificação da forma que está a ser feita e insisto que nem é pelo Brasil, que está a ser muito esperto na forma como lidera com o processo, mas apenas e tão-só com o meu infeliz país que é sempre subjugado diante de todos! Já nem vou na questão da nacionalidade... um português para estar legalizado aí é o pau! Um brasileiro aqui tem o que quer com a maior das facilidades... basta o Lula vir cá e logo milhares de brasileiros têm direito a tudo.

Quanto à questão de trocar pechisbeque por ouro, foi uma mera metáfora que tentei adaptar ao século XXI. Não quis dar a entender que vejo nisto um género de vingança de ex-colónia. Foi mesmo uma simples metáfora.

Beijos

ATG disse...

Acresce a tudo o que disse que nós portugueses não escrevemos como falamos. Temos uma cultura diferente da vossa. Há que respeitar isso. Tudo se resume, insisto, no ponto do Brasil querer penetrar em África. Por algum motivo o acordo morreu em 1991, quando os políticos portugueses viram bem a asneira que tinham feito.

Kenia Mello disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Kenia Mello disse...

Bem, também sou contrária à Reforma e acho que já deixei claro o motivo.
Só não posso deixar de pontuar que, se diferenças há entre a fala e a escrita portuguesa e brasileira, não é pertinente dizer que o padrão daqui ou o daí é o correto. Se aqui no Brasil fato significa acontecimento e para o seu fato usamos o termo terno isso constitui erro? Claro que não! O uso entre os falantes originou o desvio e fim. Nada mais natural no processo evolutivo de uma língua. Agora, se isso lhe causa revolta por ser obrigado aceitar o que lhe parece ridículo, que o faça, está no seu direito, mas não alegando que falamos/escrevemos errado ou sem sentido. Negar as particularidades evolutivas de uma língua é que é ridículo.
Que você não aceite abrir mão de coisas praticou durante toda a vida é algo que se entende, da mesma forma que para nós vai ser estranho escrever tranqüilidade sem o trema. Mas eu posso expressar o meu descontentamento acusando de ridículo caso haja algum país que tenha esse uso como norma culta da língua? Não, isso é arrogância intelectual.

Sobre a questão da nacionalidade ser difícil para vocês aqui no Brasil, acho que você está errado quanto à Casa da Mãe Joana: aqui, se um patrício seu tem um filho com uma brasileira, as pernas, ops, a nacionalidade e permanência já se abrem...

KS Nei disse...

O idioma é o da boca e não o do papel.

Com trema ou não, a gente agüenta.

Beth/Lilás disse...

Kenia, querida!
Você dissertou tão bem e diplomaticamente que ficamos sem palavras.
O que estou achando mais bonito de se ver por aqui é esta educação de ambas as partes para discutir o polêmico tema.
Quanto à língua que Portugal nos passou, foi brilhantemente contida e mantida por Dom Pedro II que fez desses 200 milhões de habitantes falarem de norte a sul uma só língua - a portuguesa. Não interessando se era português abrasileirado ou português detrás dos montes.
Isto é o que eu considero incrível para um país da dimensão do nosso.
Acho, então, que soa como um prêmio para nós, neste momento, ser o que leva a bandeira para esta reforma.
Desculpe-me se falo abobrinhs, pois não sou tão bem informada como vocês, mas gosto de participar também e dar meus pitacos.
beijos cariocas (a todos)

P.S.: Mas, sabem que eu adoro este modo de escrita dos portugueses! Estou a ler, inclusive, Equador de Miguel Souza Tavares, grande escritor luso.