sexta-feira, 3 de outubro de 2008
O casal da praça
Umas duas vezes por semana, costumo almoçar no shopping e de uns tempos para cá, venho observando um casal, que tem o mesmo hábito que eu: sentam sempre à mesma mesa ou, quando não dá, perto dela. É um casal de idosos. Ele, na faixa dos setenta, ela, quase lá. Bem conservados, distintos, elegantes (não me refiro às roupas, mas à postura de ambos).
Ele é alto, calvo e magro. Tem as feições delicadas, come devagar. De vez em quando, ergue os olhos do prato, mas não se fixa em ponto algum. Olha ao redor e volta ao que tinha momentaneamente interrompido. Sempre bebe água.
Ela é magra, pequena, algumas vezes come de óculos escuros. Não toma líquidos nas refeições e sempre termina primeiro que o marido. Tem o rosto mais grave que ele, mais contraído.
O que mais me chama atenção nesse par é que eles sentam, almoçam, terminam seus pratos em tempo desigual, mas não trocam palavra. A mulher olha tudo com a expressão de quem nada vê e não parece preocupada em disfarçar. Ele apenas come e bebe pausadamente.
Como escolhem mesas quadradas de quatro lugares, ficam em lados opostos, mas nunca frente a frente: ela passa uma cadeira e fica rente à meia parede. Ele, na ponta da passagem. Talvez porque as pernas dele sejam grandes e incomodem a mulher. Talvez porque isso faça parte do ritual de silêncio.
Entre garfadas, dou asas à imaginação e os vejo jovens namorados, ouço suas risadas, devem ter sido bonitos. Vejo-os depois de mãos dadas passeando com os filhos pequenos. Mais tarde, os filhos já crescidos, a vida assentada, sem grandes sobressaltos e a passagem dos anos até o presente. Em que ponto alguma coisa se partiu? Ou será que foi ruindo aos poucos, ano após ano? Porque um silêncio desses não nasce de um dia para o outro. Solidão assim é abismo que não se quer ou se pode transpor. E eles não parecem incomodados com isso.
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16 comentários:
Isso me fez lembrar de um casal na minha lua de mel... jovens ainda, com dois filhos pequenos... passamos 10 dias la e eles nunca conversavam...lembro que fiz exatamente essa pergunta para o Emilio, e me questionei o pq de nao se separarem e tentarem, pelo menos, encontrar a felicidade.
bjs
Ale Vidaurre
como dizia Cazuza "solidão a dois de dia, faz calor depois faz frio..."
É espantoso o q o tempo pode fazer com as pessoas,mas no fundo elas deixam mesmo.
Estava com saudade das suas crônicas.
Bjos e []s
Ivette Góis
Duas coisas eu arrisco a comentar acerca de seus questionamentos finais:
a primeira é que, mesmo havendo afetividade, certamente "algo" se rompeu em um momento onde valores equivocados os impediram de reservar o precioso tempo para ver, rever, reparar...
e, principalmente REGAR!
Daí o tempo passou... e a lacuna foi se estendendo.
Amar é cuidar, zelar, estar atento. Sempre, continuadamente...
Outro comentário que me arrisco a fazer: incomoda sim! E dói pra caramba! É uma angústia silenciosa que até se mascara... mas incomoda tanto que o silêncio do casal é tão gritante que intriga até quem observa.
Falo de cátedra. :)
E como disse dia desses um dos meus filhos, só pode falar com autoridade sobre dor, não apenas quem já passou por ela, mas principalmente quem já foi curado.
Vc sabe, né?
beijos
R.
Ah, também estava com saudade de suas crônicas...
Bora fazer uma parceria pra "A Mulher Crisálida II" ?! (risos)
De repente, o que foi feito "nas coxas" cheio de falhas, passa a ser algo mais aprimorado, com certeza rsss
beijos
R.
Kenia, essa crônica me fez lembrar meus tios, ( ele faleceu a semana passada com 84 anos )
Envelheceram e quando ele com 79 e ela 75 anos, resolveram se separar, a família toda ficou de boca aberta sem entender, e a explicação deles era simples e clara, " não temos mais assunto, nem motivos para brigas temos mais, então é melhor cada um siga seu caminho"...vai entender né?
Beijos
Lembrei de um casal que sempre se destaca nmo Festival de Inverno pois costumam ir ao FIG para dançar, já é uma atração à parte.
Mas, agora fico por conta de minha imaginação, será que não são surdos??? Vai ver só se comunicam aos gritos. Só eles sabem!
Também vejo por aí muitos casais assim, mudos nas refeições.
Já vi também casais jovens que só comiam, comiam, como esfomeados a olhar pro prato somente e nem repousam os talheres.
Quanto as pessoas mais idosas, às vezes penso que é alguma coisa relativa ao passado de não se conversar à mesa durante as refeições.
Lembro-me de meu pai dizendo quando eu era criança que na hora das refeições era prá se ficar calado à mesa. Pode ser um certo ranço dessas pessoas, né mesmo!
Kenia, tô esperando tua çfotinha lá no meu guestbook.
beijins cariocas
Oi Kenia,
observar a vida, como se fosse uma janela, é um exercício cheio de mistérios. O silêncio descrito pode ser falta de amor, pode ser excesso de companheirismo, pode ser a solidão por estar acompanhado. Nunca vamos saber o que exatamente é, mas é uma ótima oportunidade de analisarmos a nossa própria existência...
Bela crônica e um grande abraço
PS: obrigado pela visita, vc já estah no meu google reader
todo dia vejo essa cena
inclusive com casais jovens
parece que estao juntos por medo de ficar sozinhos
Solidão a dois... isso dói muito mais.
Xêro!
Kenia, eu sempre noto esse casais onde o silêncio pesa muito mais pra gente como observador que para eles.
Ë triste, seja qual fora a justificativa que se dê.
Eu lembrei de uma história minha... vou anotar aqui pra escrever também... hahhahah.
bjos
Ficou aqui uma pergunta na minha cabeca. Se estao tao distante um do outro desse jeito, pq sera' que vao ao shopping almocar com frequencia?
Sera' que e' por causa da rotina, que faz parecer que tudo esta' "normal"? Se quebrar a rotina, nao tem mais jeito de negar a realidade.
Ou sera' que a essa altura eles estao tao intimos, tao acostumados um com o outro, que palavras sao ja' totalmente desnecessarias? Gosto de pensar que esse e' o caso.
Sei la'...
Mas esse silêncio tem peso de solidão? Alheios??? Pela descrição eles não passavam sensação de cumplicidade...Lembro de um casal que vi, comendo em silêncio, mas que se olhavam como se estivessem em encantamento. O silêncio deles era eloquente, e falava coisas de amor...
Gente, pode ser muita inferência da minha parte, mas, como sempre os vejo e na mesma hora, creio que fazem as refeições diariamente por lá, o que é muito comum em idosos, que preferem comer fora a ter que cozinhar ou pagar alguém só para fazê-lo.
E sobre o silêncio deles, me passa mais alheiamento do que cumplicidade. Feelings, nothing more than feelings... :P
Pela tua descrição, eu imagino muito mais costume de comer calado que uma eventual falta de assunto. Junte a isso a mínima vontade de ser incomodado - vide os óculos escuros na mulher - e temos o cenário.
Leiam a fábula do velho, do menino e do jumento.
Abç
Xereta
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