terça-feira, 3 de março de 2009
Não tenho curiosidade pela vida alheia. Explicando melhor, não sou do tipo que fica vidrada em reality shows, esperando ver reações, ouvir coisas ou apenas espiando pessoas em situações corriqueiras. Eu até gosto de observar pessoas, mas por pouco tempo, vendo-as passar na rua, por exemplo. E às vezes eu até preferia não ter
que lidar com algumas, na verdade, há dias mesmo em que eu adoraria não ter nenhuma à minha volta, mas isso é outra conversa.
No entanto, uma coisa instiga a minha curiosidade: habitações. Sem pessoas dentro. Apenas seus cômodos e mobiliário. Imaginar que tipo de gente vive ou viveu em determinado lugar a partir de objetos, sua disposição, o que recebe destaque em cada cômodo, a presença de luz ou a falta dela, os quadros, a quantidade de livros e onde são guardados, as cores com as quais são pintadas as paredes. Se o lugar me passa a sensação de aconchego ou apenas de um canto onde se come e dorme.
Tenho particular curiosidade com relação a imóveis antigos. No bairro onde moro, quase não se encontram mais prédios ou casas assim, consigo lembrar de poucos e não completo nem os dedos de uma mão. Mas na avenida à beira-mar tem um que eu adoraria conhecer. Ao lado dele há uma casa antiga, também em ruínas e abandonada - ambos devem estar no meio de brigas de herdeiros porque o metro quadrado lá é bem caro e só uma pendência judicial pode estar evitando a demolição e/ou restauração dos mesmos - eu sei que é querer demais, mas não seria possível dar uma ajeitadinha neles enquanto a hipotética disputa judicial corre?
Pois bem, o prédio de dois andares, que não é tão antigo assim (deve ter sido construído nos anos 50), está lá, caindo aos pedaços. A garagem já foi lacrada e o jardim, ou o que sobrou dele, está cheio de ervas daninhas e lixo. A cor original permanece: branca com detalhes azuis. Qualquer dia desses, faço umas fotos e mostro aqui.
Sempre que passo por ele, costumo dar asas à imaginação e pensar nas pessoas que moraram nesses apartamentos. Possivelmente os tenham usado como imóvel de veraneio. Talvez tenham morado definitivamente ali, de frente para o mar, num tempo em que os prédios eram poucos e baixos. Muito me instiga pensar em como o ritmo de vida dessas pessoas, mais desacelarado e menos acossado pela violência, desenrolava-se dentro daquelas quatro paredes. Algumas delas devem estar mortas. Haverá, no seu interior, ainda algum móvel, algum resquício que possa, por alguns segundos, trazer o passado de volta?
Quando estive na casa de Anne Frank, em Amsterdam, tive a confirmação do quanto esse tipo de experiência é representativa para mim. Claro que o fato de conhecer a história dos Frank trouxe uma dose extra de emoção, mas ver a escada quebra canela*, os cômodos com alguns móveis, o quarto de Anne com fotos nas paredes como o de qualquer adolescente, deu-me a possibilidade de experimentar sensações muito vivas: era quase possível ouvir suas vozes, sentir o cheiro da comida sendo preparada, ver a vida que um dia habitou aquele espaço. Eu poderia passar horas nessa aventura sensorial...
Na época em que li O Diário pela primeira vez (a primeira versão, que teve partes suprimidas pelo pai, pois Anne fazia referências muito cruas à sua mãe, além de confidências relativas à própria sexualidade. A segunda versão, que é o diário na íntegra, li anos depois), não tive como não me sentir tocada pela menina cuja maior transgressão era espiar a rua por uma frestinha da cortina da janela do seu quarto. E anos depois, ao sair do museu e ver a estátua de Anne na calçada, bem embaixo da janela do seu quarto no anexo, fiquei com o coração meio aquecido pela delicadeza de um desejo que foi simbolicamente realizado.
* A escada para se chegar ao anexo recebe esse nome porque os degraus são muito estreitos. Assim, à medida que alguém sobe, a atenção deve ser redobrada, caso contrário, vai ter sempre uma perna batendo no degrau de cima e a pancada dói bastante. :)
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3 comentários:
Já falei!
Esse blog também é cultura... :)
bj
R.
Belo texto, Kenia, realmente muito sensível... Sobretudo a observação que faz à estátua de A. Frank fora de suas quatro paredes.
Me pergunto sempre se a identificação (ou simples contemplaçao)com alguns objetos, casas desabitadas ou ruas antigas, que nos remetem a um passado que não conhecemos, seja uma memória cultural repassada no nosso DNA. Digo, quimicamente repassada no nosso cérebro. Ou se será uma identificação apenas baseada nos elementos que adquirimos em vida, através de livros, cinema ou pinturas. Beijos, antes que eu me perca em divagações... :)
Ah, post fofo
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