segunda-feira, 27 de julho de 2009

Conversa na Tabacaria



Estar vivo é quase vertigem, uma consumição voraz, febril, demasiada. E noutras horas, lânguida moça de pernas compridas, entrecruzadas, unhas vermelhas, que fuma a cigarrilha em displicência, enquanto fita círculos que se dispersam no ar parado de um quarto que não é seu.


Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.



Dói e não se basta. E cada dia, palavra e gesto chegam a preço de carne viva, navalhada. Onde estão as certezas prometidas? O bafo doce da sorte? Os queimores da paixão? Não, não se vê nada além da noite e das paredes frias, mapa secreto da desolação. Outra vida, de outra matéria, corre lá fora, graceja em saias floridas que o vento tange, regala-se em risos que se espraiam rua afora, pacificada que está pela sábia ignorância ou, quem sabe, pelo profundo entendimento e aceitação das efemeridades. Todas essas vidas, em coro, vão. Aqui, olhos inertes, voz congelada e uma tela vazia. As tintas secaram faz tanto tempo, na escuridão.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.



A mesa, as flores, as poltronas, os livros, o perfume de sempre, a figueira. Tudo mudei, tudo mudou para dentro de mim. Hoje sigo levando o peso do mundo que me confere contraditória leveza. De nada mais sinto a ausência. Todas as caixas, semicerradas, me espreitam com olhos de bem-me-quer. E ao abri-las, todos os risos, lembranças e melancolias me cercarão de amor num abraço terno de reencontro. Mas vou gozá-las aos poucos, todas, sem pressa, porque felicidade e tristeza em demasia me deixam tonta, desnorteada. Uma bolinha de sabão que estoura ao leve roçar do dedo.


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.



* Em itálico, trechos retirados em desordem de Tabacaria, de Álvaro de Campos.

5 comentários:

Anônimo disse...

simplesmente lindo!

"E ao abri-las, todos os risos, lembranças e melancolias me cercarão de amor num abraço terno de reencontro. Mas vou gozá-las aos poucos, todas, sem pressa, porque felicidade e tristeza em demasia me deixam tonta, desnorteada. Uma bolinha de sabão que estoura ao leve roçar do dedo."

Imagem forte e doída mas tratada com toda delicadeza.

E o diálogo foi extremante feliz.Bons ventos te trazem,amiga.

Bjos e []s

Ivette Góis

gerferson neftali disse...

kenia,
ficou muito bonito.
vc escreve muito bem mesmo.

ei, aproveitando dá uma passada nos ventos brandos. tem um texto sobre lourival lá. ia mandar pra todo mundo mas não sei fazer isso.
se vc puder enviar o link do texto pra turma agradeço.
um cheiro.
http://ventosbrandos.blogspot.com

AMARela Cavalcanti disse...

belo texto, amiga!
já viu as belas palavras de gerferson sobre sábado???
chorei novamente ao ler...

saudade por antecipação!

Anônimo disse...

Obrigado por escrever. Só isso.

João Eurico disse...

ficou deveras bom.
dupliplusbom.

Essa identificação com FP vai e vem né ?