quarta-feira, 21 de maio de 2008
Primeira edição
Ronda
De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio em todos os bares
Você não está
Volto pra casa abatida
Desencantada da vida
O sonho alegria me dá
Nele você não está
Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, esta busca é inútil
Eu não desistia
Porém, com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar
E neste dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João
(Paulo Vanzolini)
Cresci ouvindo músicas no rádio. Elas eram a trilha sonora das minhas brincadeiras, dos nossos almoços em família (havia um programa na Rádio Difusora que, ao meio-dia, só tocava música instrumental do tipo das grandes orquestras de antigamente) e das demais atividades do dia-a-dia.
Na casa dos meus avós, havia sempre alguma música tocando no rádio ou na radiola. Lembro-me delas num volume moderado, discreto porque lá barulho excessivo nunca foi bem-vindo. Ainda hoje é em ambientes mais silenciosos que me sinto em casa.
Eu tinha uns dez, onze anos quando ouvi pela primeira vez Maria Bethânia cantar essa canção. E foi como se alguma coisa tivesse passado a existir daquele momento em diante, era impossível que aquilo tudo servisse apenas como pano de fundo. Parei o que fazia e deixei que cada acorde, cada palavra entrassem dentro de mim certeiros, mesmo sem saber exatamente para que serviam, o que diziam, por quem chamavam.
A voz de Bethânia rasgava meu peito e me mostrava uma dor de amor diferente daquelas que eu já ouvira cantar, nas quais sempre o amante chorava a inacessibilidade do seu amor ou mesmo a perda dele. A mulher, sendo amada, era sujeito passivo de alguém. Elas eram como a maioria das mulheres que eu conhecia (mas não todas): recebiam o amor pronto aos seus pés e às vezes partiam, seu máximo de subversão.
Mas aquela voz me feria o coração de tal modo que foi como se eu, de mãos dadas com ela, percorresse os bares e os rostos em busca de alguém que eu sequer sabia quem era. Aos dez anos, essas coisas não dizem muito, mas foi através delas que eu percebi que havia um mundo para além daquela música, um mundo que eu não compreendia, mas que me dóia como um presságio.
Fotografia: Flickr
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8 comentários:
Otimo, Kenia. Esta cancao foi umas das primeiras da musica brasileira que eu ouvi na minha vida, e fiz surgir o meu interesse nesta musica e naquela da Bethania, que eu ate agora eh uma das cantoras que eu mais gosto. valeu! Olaf.
"eu percebi que havia um mundo para além daquela música, um mundo que eu não compreendia, mas que me dóia como um presságio."
coisa mais linda essa. Mais um texto delicioso,nostálgico,rico.
Bjos e []s
Ivette Góis
Olá Kenia!
Vim te visitar e encontro esta belezura de letra que também, nos meus tempos de moça, encheram meu coração e minha cabeça de poesia.
Aliás, escrevi ontem mesmo um post em meu blog, revisitando outro monstro sagrado da MPB. Dê uma olhadinha lá e descubra de quem estou falando.
Beijos cariocas.
A primeira música de Betânia a me impressionar foi "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Eu era criança e a imagem que o verso dizia era muito forte para mim. Ficava imaginando que tudo quanto era problema na vida deixava uma marca de poeira na gente.
Kenia, teu blog tá ficando cada vez melhor. Bethania abençoa qualquer escrito belo e bonito. Nêga, o que é essa letra, hein? "Com perfeita paciência"... É curioso como a música, as vezes a mesmíssima música, pode ser um pano de fundo e, de repente, dá um clique e toda a poesia entra de verdade na gente e, tchun, faz sentido.
inclusive o Paulo, que era medico, fez um dos sambas mais geniais da historia
"volta por cima"
"levanta sacode a poeira e da' a volta por cima...."
PS a foto e'otima
Mulher, pare de humilhar a gente...
E, antes que você se arrete, isto não tem tom de demérito, e sim de elogio...
E ainda "recheado" de Vanzolini, em plena quinta feira que seria feriado e não foi, salva o dia...
Poesia em verso e prosa, o mundo precisa disso
Belo post.
Bethania muitas vezes pega uma canção mais ou menos, grava e ela vira uma obra-prima. Foi assim com "Memoria da Pele" de João Bosco. Ela cantando essa música é demais.
Eu cresci ouvindo uma fita cassete (eita!) de Bethania que tinha aquela musica "ó abelha rainha, faz de mim um instrumento do teu prazer, sim..." ui, nêga!
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